Conheça Mãe Stella de Oxóssi, a homenageada da Flipelô 2023!
Mãe Stella registrou em livros o saber ancestral das religiões de matrizes africanas
Foto: Antonello Veneri
A sétima edição da Festa Literária Internacional do Pelourinho, a Flipelô, acontecerá de 9 a 13 de agosto, com uma programação que se estende pelo Centro Histórico da capital baiana. A homenageada da edição 2023 será Maria Stella de Azevedo Santos, mais conhecida como Mãe Stella de Oxóssi — escritora, enfermeira e uma das maiores ialorixás do Brasil.
Autora de livros que registram o saber ancestral das religiões de matrizes africanas, a homenageada ocupou a cadeira de número 33 da Academia de Letras da Bahia (ALB), cujo patrono é o poeta Castro Alves, e teve uma relação forte com Jorge Amado na vida material e espiritual. O maior escritor baiano tinha o título Obá, posto civil que exercia no Ilê Axé Opô Afonjá, casa de Candomblé da nação de Keto, localizada no bairro de São Gonçalo do Retiro, em Salvador, onde Mãe Stella foi sacerdotisa de 1976 até sua morte em dezembro 2018.
Nascida em 1925, em Salvador, Mãe Stella foi iniciada no candomblé em 12 de setembro de 1939, aos 14 anos de vida, pela ialorixá Mãe Senhora [Maria Bibiana do Espírito Santo]. Após a iniciação recebeu o nome (orúko) de Ode Kaiodê, que significa ‘caçador traz alegria’. Aos 51 anos de idade, em 17 de junho de 1976, foi escolhida como a quinta ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, para substituir Mãe Ondina de Oxalá, morta no ano anterior.
Literatura
Mãe Stella de Oxóssi foi uma grande defensora da cultura afro-brasileira e fez da literatura uma arma nessa guerra. Defendeu com veemência as tradições do Candomblé, preservou os ritos seculares e fez os seus leitores refletirem sobre a importância das religiões de matrizes africanas. Materializou as histórias orais, as vivências, os mitos e as lendas em textos, que a levaram a ser a primeira mãe de santo a se tornar imortal na ALB.
A ialorixá usa a literatura para lançar o brado contra o sincretismo, desvinculando de vez o Candomblé da Igreja Católica e afirmando-o como Religião. Traçou críticas as tais “benesses” do sincretismo, quando os escravos tiveram que adorar santos católicos para driblar os senhores brancos-escravocratas da fé nos orixás africanos. Mãe Stella defende em seus textos o quão isso historicamente está defasado. Ela sempre assumiu o candomblé de frente, por isso, escrevia artigos em defesa da importância do Candomblé para o legado da Bahia e do Brasil.
Em um de seus artigos publicados em A TARDE, jornal onde era colunista, disse que “o bom e o bonito é que cada um se fixe na sua crença, nos seus símbolos, na sua energia e não precise se segurar no outro para mostrar potencialidade”. Os artigos publicados no centenário impresso baiano estão reunidos no livro Opinião — Maria Stella de Azevedo Santos — ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá — Um presente de A TARDE para a história, publicado em 2012.
A estreia de Mãe Stella de Oxóssi na literatura foi em 1988, com a publicação do livro E Daí Aconteceu o Encanto, em parceria com Cléo Martins, onde rememora as raízes do Opô Afonjá e de suas primeiras ialorixás. Em 1993, lançou Meu Tempo é Agora. O livro é uma espécie de manual para a formação de seus filhos-de-santo. A homenagem a Oxóssi, orixá para o qual foi iniciada, veio no livro Òsósi — O Caçador de Alegrias. Publicado em 2006, é composto por narrativas míticas. Em 2007, lançou Òwe-Provérbios, uma coletânea de ditos iorubanos e brasileiros acompanhados das interpretações da escritora.
A ialorixá também produziu um livro destinado ao público infantil. Lançado em 2009, Epé laiyé — Terra Viva conta a história de uma árvore que ganha pernas e vai lutar pela construção de um mundo que respeita o meio-ambiente.
Em 2012, publicou o volume Opinião — Maria Stella de Azevedo Santos — ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá — Um presente de A TARDE para a história, uma reunião de crônicas selecionadas entre as que a ialorixá publicou no jornal soteropolitano A Tarde. Em 2013, com a contribuição de sua companheira e também escritora Graziela Domini, deu início à série Odu Àdájo, com o livro Ófun. A coletânea é formada por 16 tomos, dedicados ao oráculo jogo de búzios. Cada volume é sobre uma caída do jogo. Os demais livros da coletânea foram publicados após a morte da ialorixá.
Em 2014, foi lançado o último livro em vida por Mãe Stella, onde a imortal da cadeira de número 33 da ABL reuniu um conjunto comentado de provérbios oriundos de diversas religiões — do candomblé ao hinduísmo — intitulado Abrindo a Arca. A obra reúne 89 provérbios, idade da autora no período da composição do impresso.
Em dezembro de 2018, poucos dias após sua morte, a editora Solisluna lançou o livro A Ialorixá e o Pajé. A publicação é um relato verdadeiro sobre as lembranças de momentos que Mãe Stella de Oxóssi viveu quando era uma jovem enfermeira. A história narra um encontro da escritora com um Pajé, e a troca de conhecimentos sobre plantas, ervas medicinais, raízes, sementes, folhas e rituais entre uma pessoa nascida na cultura afro-brasileira e outra na cultura indígena.
Mãe Stella tinha profundo respeito pela tradição oral do candomblé, mas sempre defendeu o registro escrito, pois assim iria tornar duradouro seus ensinamentos. Em 12 de setembro de 2013, aos 88 anos de idade, no discurso de posse na ABL, ressaltou que não era “uma literata ‘de cathedra”, que não conhecia “com profundidade as nuanças da língua portuguesa”. E afirmou: “sou uma literata por necessidade”.
E pontuou que a literatura, o ato de escrever, era parte do compromisso que assumiu ao se tornar ialorixá em manter viva a história do seu povo:
A sabedoria ancestral do povo africano, que a mim foi transmitida pelos ‘meus mais velhos’ de maneira oral, não pode ser perdida, precisa ser registrada. Não me canso de repetir: o que não se registra o tempo leva. É por isso e para isso que escrevo. Compromisso continua sendo a palavra de ordem.
Esse compromisso, Mãe Stella manteve até o último dia de sua vida. Sempre tendo a literatura, o registro textual de seus aprendizados e ensinamentos orais, como arma, o que a transformou em uma “intelectual orgânica da comunidade litúrgica”, como a define o jornalista e sociólogo Muniz Sodré, que hoje ocupa a cadeira 33 da ALB.
“Mãe Stella, dentro da tradição das ialaxés do Opô Afonjá, é uma intelectual orgânica da comunidade litúrgica, dando especial atenção a trabalhos acadêmicos que digam respeito ao culto, dialogando frequentemente com escritores, artistas e jornalistas”, afirma Sodré no artigo Que chegue a alegria, publicado em 2014, no livro Mãe Stella de Oxossi: estrela nossa, a mais singela, organizado pelo escritor Marco Santana.
A relação com Jorge Amado
Para ser homenageado pela Flipelô precisa ter tido uma relação forte com a vida de Jorge Amado. A relação dele com Mãe Stella iniciou antes dela se tornar ialorixá. O escritor baiano recebeu o título honorífico do candomblé criado no Ilê Axé Opô Afonjá por Mãe Aninha em 1936. Esses títulos honoríficos de doze Obás de Xangô eram concedidos aos amigos e protetores do Terreiro. Jorge foi Obá Arolu.
“O Axé Opô Afonjá era o terreiro que Jorge Amado era mais ligado e tinha intimidade. Todas as visitas que fazíamos à Mãe Senhora, estava lá, sempre lá, Stella. Era uma jovem ainda, muito tranquila e muito simpática, sempre ao lado de Mãe Senhora. A quem Mãe Senhora tinha uma grande estima, grande afeição. O Jorge dizia: ‘Mãe Senhora está preparando a Stella para sucedê-la no dia em que ela faltar’”, disse a escritora e esposa de Jorge Amado, Zélia Gattai, em depoimento ao documentário Estrela Azul: Mãe Stella, produzido pela TVE em 2005.
Zélia também revelou como ela e Jorge tornaram-se padrinhos de casamento de Mãe Stella. “Um dia recebemos um recado de Mãe Senhora, um convite, que Stella ia casar, convidando a mim e Jorge parta sermos os padrinhos de casamento. E assim foi que fomos padrinho de casamento de Stella”, revelou a autora de Anarquistas, Graças a Deus.
A relação do casal Amado com Stella foi ficando mais forte com o passar do tempo. Uma amizade sustentada no respeito e na admiração, tanto que Jorge proclamava Stella como irmã e a admirava como escritora e como uma das maiores ialorixás do candomblé na Bahia.
Quando Mãe Stella foi escolhida para assumir o posto de ialorixá, Jorge escreveu:
Stella de Oxossi, minha boa irmã […] a yalorixá, acende a aurora dos santos, levanta a bandeira dos orixás. Salve mãe Stella de Oxóssi em seu trono do Axé Opô Afonjá.
Esse respeito e admiração também era reciproco. Em um dos textos publicados no livro Opinião — Maria Stella de Azevedo Santos — ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá — Um presente de A TARDE para a história, Mãe Stella diz:
Jorge Amado, ateu que acreditava em Oxóssi […] foi escolhido como Oba de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá. Ele foi para nós um Sacerdote ‘Ministro da Justiça’, que atuou de maneira marcante, uma vez que foi através dele que o Candomblé passou a ser constitucionalmente visto como uma religião, o que fez com que seus adeptos não precisassem mais pedir licença à polícia para adorar Olorum — o Grande Criador — e os Orixás — as divindades auxiliares. Filho espiritual da saudosa Mãe Senhora, o deputado Jorge Amado, através de Osvaldo Aranha, entrou em contato com o então Presidente da República — Getúlio Vargas — que instituiu o decreto 1.212, dando liberdade de culto ao conhecido ‘povo de santo’. Xangô, orixá da justiça, que tem no número 12 uma forte simbologia, com certeza estava ao lado de seu ministro.
Mãe Stella segue entre nós
Mãe Stella seguirá viva entre nós pelas palavras escritas e faladas, pelos ensinamentos repassados, e por tudo que deixou construído dentro e fora do Ilê Axé Opô Afonjá. Tudo o que ela fazia era direcionado a colher frutos no futuro, sempre a favor dos seus filhos de casa e da rua, do povo pobre e negro da comunidade ao redor do Terreiro e para longe dele. Seu legado não tem fronteira, não tem geografia que o encaixe em limites rabiscados em mapas.
O Ilê Axé Opô Afonjá tornou-se mais forte com Mãe Stella. Foram 42 anos à frente do Terreiro. Mais de 80 anos de contribuição histórica para a religião do Candomblé. E todo mundo ganhou com isso.
Fundado em 1910, por Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, o Ilê Axé Opô Afonjá tornou-se mais que uma casa-santuário, tornou-se um espaço educativo e cultural, com as portas abertas a todos e todas. Por isso, em 1982, Mãe Stella criou o Museu Ilê Ohum Lailai (Casa das Coisas Antigas, em Yorubá), sendo o primeiro museu criado dentro de um terreiro de candomblé.
A ideia da criação do museu veio após a visita da ialorixá à Nigéria, onde conheceu três museus que inspiraram a criação do Lailai. “Um dos museus tinha uma proposta bem simples, contava a história da cidade por meio objetos do dia a dia. Lembrei de todo o material que possuíamos, das roupas de Mãe Aninha, dos objetos de Mãe Senhora, tudo meio espalhado. Começamos a criar o Lailai a partir desta ideia — mostrar a evolução do Candomblé a partir de nossa própria história”, contou Mãe Stella em um depoimento ao portal oficial do governo da Bahia.
No acervo estão insígnias dos orixás (objetos utilizados durante o culto), utensílios usados no preparo das oferendas, plantas litúrgicas e terapêuticas, instrumentos musicais e documentos do Afonjá, todos eles ligados ao culto, além dos objetos de culto das ialorixás da casa.
O Ilê Axé Opô Afonjá também conta com a Biblioteca Ikojppo Ilê Iwe, que busca preservar e difundir a memória da comunidade e da história dos africanos no Brasil; a Casa do Alaká, responsável por produzir indumentárias religiosas; a Casa de Cultura Odé Kayodê, dedicada à arte e educação, que oferece aulas de dança, teatro, poesia e literatura, além de ser palco de ações de educação ambiental; a Praça Odé Kayodê, palco de eventos culturais; o Centro de Documentação e Memória Afonjá, que tem o objetivo de preservar e divulgar a memória religiosa do terreiro; e a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos
A instituição educacional comunitária iniciou como uma creche em 1978, em um pequeno espaço dentro do terreiro, voltada às crianças na faixa entre 6 meses e 5 anos, com o nome de Mini Comunidade Obá Biyi. O projeto cresceu rapidamente e foi expandido para conseguir atender a demanda. Assim, a creche transformou-se em Escola Eugênia Anna dos Santos, com o ensino de 1ª a 4ª série do ensino fundamental. Depois foi novamente ampliada e municipalizada em 1998.
A missão da escola é desenvolver atividades e vivências pedagógicas que possibilitem às crianças a construção do conhecimento, excelência de desempenho de papéis na sociedade e sua integração cidadã, tendo como apoio motivacional do processo ensino-aprendizagem referências culturais da comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá.
A referência à identidade negra e o respeito à diversidade religiosa é um fator presente no projeto pedagógico, garantindo às crianças um convívio com canções, palavras, expressões e mitos que falam do universo Nagô, tudo em dialeto yorubá.
Por toda a importância histórica, ancestral, religiosa, cultural e educacional, o Ilê Axé Opô Afonjá foi tombado em 28 de julho de 2000 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sendo o segundo templo de culto afro-brasileiro a ganhar status de patrimônio nacional. O primeiro foi Terreiro da Casa Branca, em 1986.
Com o tombamento, a área de 39 mil metros quadrados do Ilê Axé Opô Afonjá, que abriga uma grande extensão de vegetação densa preservada, edificações de uso habitacional, educacional e religioso, ganha valor simbólico. O terreiro está incluso no rol do que é considerado patrimônio e deve ser preservado para as próximas gerações.