De mãe para filha, produtoras baianas de licores preservam tradição artesanal através da ancestralidade: "Cada garrafa carrega um pedaço de mainha"
Neste São João (24), o Farol da Bahia conta as histórias de empreendedoras que transformaram receitas de família em negócios

Foto: Arquivo Pessoal
Tradição, memória e ancestralidade marcam a história da produção de licor na Bahia, especialmente entre mulheres. Neste São João (24), o Farol da Bahia conta as trajetórias de Márcia Biset e Tatiane Pimentel, que seguem receitas herdadas das mães e mantêm viva, na cozinha e nas festas juninas, uma prática que atravessa famílias e celebrações.
Em 2022, oito anos após a morte da matriarca Doralice dos Santos, Márcia Biset, caçula de três irmãos, decidiu com a irmã Martha dar seguimento à produção de licores que cresceram vendo a mãe realizar. Ali nascia o licor Filhas de Dora – Sabor de gerações.
“Há quatro anos fizemos uma faxina nas coisas dela e encontramos os registros, as receitas, e aí eu e minha irmã resolvemos colocar algo no mundo para homenagear. Cada garrafa de licor que sai da nossa cozinha carrega um pedaço de mainha”, conta Márcia.
Motivada pela necessidade de renda extra, Luciene Pimentel, mãe de Tatiane começou a produzir licor artesanalmente para o São João. O sucesso foi rápido, e a partir da indicação de amigos e familiares a produção cresceu. Hoje, mãe e filha mantêm o processo artesanal lado a lado no Licor da Lulu.
“Minha mãe fazia tudo, e o licor conquistou cada vez mais gente pelo sabor e pela qualidade”, conta Tatiane.
Filhas de Dora
A história começa com Doralice dos Santos, a mainha, que deixou Maragogipe, no Recôncavo Baiano, para morar em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, onde criou três filhos.
Para ajudar no sustento da casa, Dora vendia salgados, bolos, doces, costurava e, claro, fazia licores. Na época do São João, a bebida era presença garantida na mesa da família.
“Minha mãe era uma cozinheira incrível, daquelas que fazia tudo com muito amor”, lembra Márcia.
Com o tempo, os licores ganharam fama na vizinhança e passaram a ser vendidos para outras cidades. Márcia e a irmã Martha cresceram acompanhando a mãe na cozinha, anotando receitas e aprendendo com o que viam.
“A gente aprendeu ajudando mesmo, até para ganhar um dinheirinho. Ela registrava tudo em um caderno de receitas com a letra dela, que guardamos até hoje. É como se ela ainda estivesse com a gente, orientando, cuidando dos detalhes, como sempre foi”.
Para Márcia, manter o negócio é mais do que produzir bebida para fins lucrativos, é sobre honrar o legado da mãe. “A união familiar nos fortalece enquanto pessoas e no nosso negócio, porque cada um entende o valor de manter viva essa memória. Passa das vendas, é manter viva a herança afetiva”.
Além das receitas tradicionais de Doralice, Márcia e Martha também passaram a experimentar novos sabores e se especializaram na profissão através de cursos. Elas são as responsáveis pela produção da empresa.
Márcia destaca que os sabores tradicionais são feitos sagradamente do jeito que a mãe ensinou, no mesmo passo a passo, e que foi possível encontrar o equilíbrio com as novas ideias.
“A gente respeita o tempo do licor. É um processo que honra o passado e entrega sabor de cuidado e carinho, parece que a gente coloca nossa alma. Hoje trabalhamos tanto com as receitas dela, tanto com as novas. É uma junção do que ela deixou com a nossa e isso deixa tudo muito mais gostoso, essa mistura de sabores e saberes”.
Em 2024, as irmãs empreendedoras conseguiram inaugurar uma loja, aberta de domingo a domingo, em Camaçari. No espaço, um litro de licor de passas produzido pelas mãos de Doralice está exposto. “A gente não abre. Fica ali como lembrança dela”.
Para Márcia, época de São João é tempo de memória, de reencontro com as raízes e de sentir a presença da mãe em pequenos gestos do dia a dia.
“Quando minha irmã faz o licor de jenipapo, que era o preferido de mainha, e o aroma invade a casa, eu volto no tempo, lembro de mainha preparando os licores, cuidando de cada detalhe. É como se ela ainda estivesse ali, com a gente”.
Licor Caseiro da Lulu
O licor caseiro da família Pimentel nasceu em 2003, pelas mãos de Luciene, a Lulu. Na época, ela buscava uma alternativa para complementar a renda e aproveitou a proximidade do São João para testar as primeiras receitas.
Incentivada por uma irmã que tinha um bar e acesso a um bom distribuidor de cachaça, Luciene preparou cerca de 50 garrafas, vendidas entre amigos e parentes. No ano seguinte, antes mesmo de começarem os festejos, os pedidos reapareceram, e a bebida passou a conquistar novos clientes por meio das indicações.
Hoje, Luciene mantém a produção artesanal ao lado da filha, Tatiane Pimentel. Todo o processo de preparo do licor continua nas mãos da mãe, enquanto Tatiane participa das etapas de compra de insumos, envase, rotulagem e fechamento das garrafas. Além das duas, familiares e amigos próximos ajudam nas vendas, entregas e divulgação durante o período junino.
“Sou suspeita pra falar de São João porque, pra mim, é a melhor festa, a melhor época do ano. E por trabalhar com licor, isso ganha um significado ainda mais especial. É como juntar dois amores num só momento”, conta Tatiene.
Atualmente, a marca oferece 11 sabores. O maracujá cremoso sempre foi o mais procurado, mas, nos últimos anos, os licores de doce de leite e cupuaçu com morango vêm ganhando destaque entre os clientes. O cuidado artesanal e o toque familiar são marcas registradas do produto.
“Quando eu conto que todo o licor é feito pela minha mãe, as pessoas se encantam. Sempre mandam recados pra ela, elogiando o sabor e a qualidade. Isso, sem dúvida, é o que mais nos deixa felizes e realizadas: ver que, a cada ano, mais gente se apaixona pelo nosso licor, tanto quanto nós”.