Emendas parlamentares: quantia paga atualmente é 179 vezes maior que há 10 anos
Mudanças constitucionais realizadas pelo Congresso aumentaram o poder do Legislativo sobre o Orçamento
Foto: José Cruz/ Agência Brasil/Arquivo
Em 2023, o valor de emendas parlamentares pagas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva chegou a R$ 34,5 bilhões. A quantia representa 17,9% das chamadas despesas livres, a parcela dos recursos públicos que o Executivo teria para escolher em que gastar. Comparado com 2014, o valor pago às emendas atualmente é 179 vezes maior.
Naquele ano, as emendas pagas correspondiam a 0,1% (R$ 200 milhões) das despesas livres. No entanto, o Congresso Nacional aprovou, ao longo dos últimos 10 anos, uma série de alterações constitucionais que, por um lado, conferiram aos parlamentares maior controle e influência sobre o Orçamento e enfraqueceram um dos principais instrumentos de negociação do Executivo: o poder de decidir o destino dos recursos públicos.
Atualmente, 93% do Orçamento do País é direcionado para gastos obrigatórios (aposentadorias, salários, etc). Os outros 7% são gastos livres, cuja destinação pode ser decidida pelo governo com base em critérios econômicos.
Executivo e Legislativo disputam essa fatia para decidir quem vai determinar a destinação das verbas federais. As emendas parlamentares são o instrumento legal utilizado por deputados e senadores para direcionar recursos às suas bases eleitorais.
O levantamento realizado pelo economista e pesquisador do Insper, Marcos Mendes, para o Estadão considerou as emendas que foram efetivamente pagas, incluindo também os valores dos restos a pagar, montante referente às emendas que iniciaram o processo de execução, mas não foram pagas no mesmo ano, sendo transferidas para o orçamento subsequente.
Para Mendes, o aumento do controle orçamentário pelo Congresso gera um conflito de competências entre os entes federativos, à medida que recursos federais, originalmente destinados ao Executivo e aos seus ministérios, passaram a ser remanejados por meio de emendas parlamentares para a realização de investimentos que, teoricamente, deveriam ser de responsabilidade dos municípios.
“O dinheiro federal é para cuidar da Força Nacional de Segurança, desenvolver políticas de imunização de saúde, investir em rodovias federais... As emendas tiram dinheiro que seria para essas finalidades e mandam para o município para asfaltar rua, por exemplo, uma coisa que deveria ser feita pelo município com o dinheiro municipal.” explica.
Mendes considera que o crescimento do poder do Congresso para definir o destino dos recursos públicos leva não só à fragmentação orçamentária, como também conduz a políticas públicas ineficientes, desordenadas e de baixa qualidade, por privilegiar muitas vezes os interesses eleitorais e locais dos parlamentares.
A área da saúde ilustra bem a distorção provocada pela apropriação do Legislativo sobre o Orçamento. Um estudo realizado pela Fundação Tide Setúbal avaliou o perfil dos investimentos feitos pelos parlamentares e revelou que esse dinheiro federal não está sendo direcionado para os municípios mais pobres do País e que possuem menos recursos para promover os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), considerado a “porta de entrada” do sistema de saúde brasileiro, como consultas médicas, exames, vacinas, entre outras ações.
A pesquisa considerou as emendas parlamentares distribuídas a partir de 2018 e mostrou que, embora concentrem 46% da população brasileira, as cidades com uma cobertura de saúde classificada como precária receberam quatro vezes menos recursos do que aquelas com uma estrutura considerada completa.
Nos últimos anos, a Saúde tem recebido bilhões em investimentos via emendas parlamentares, especialmente a partir de 2015, quando a Emenda Constitucional nº 86 impôs a obrigatoriedade de execução, o chamado Orçamento impositivo, das emendas individuais – recursos destinados individualmente por deputados e senadores a redutos eleitorais. Como contrapartida, o texto constitucional estabeleceu que metade do valor fosse destinado à Saúde.
Alvo de críticas por parte de especialistas em gestão pública, o Orçamento impositivo na prática limita ainda mais a margem que o governo federal tem para remanejar recursos e realizar investimentos estratégicos.
Segundo o cientista político, Lúcio Rennó, integrante do Laboratório de Pesquisa em Comportamento Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP), a implementação do Orçamento impositivo para as emendas individuais e de bancada estabeleceu uma espécie de “cota parlamentar” e um piso igualitário para os congressistas, reduzindo o poder de negociação tanto do Executivo quanto dos líderes partidários e ampliando as dificuldades na formação de uma maioria governista no Congresso.
Uma das consequências desse enfraquecimento do Executivo, na avaliação do cientista político da FGV, Cláudio Couto, é a necessidade de intensificar o uso de outros instrumentos para a construção da governabilidade, como a distribuição de cargos em ministérios e na administração pública federal.
Neste ano, o instrumento promete ficar mais limitado após o Congresso ter aprovado a LDO de 2024, que estabeleceu um calendário para o empenho (reserva do dinheiro no Orçamento) das emendas impositivas (individuais e de bancada) até 30 de junho, restringindo ainda mais o poder de barganha do governo. Até o momento, o Planalto tem a prerrogativa de poder decidir o ritmo de liberação dos recursos ao longo do ano, mesmo para as emendas de execução orçamentária obrigatória.