Famílias brasileiras destinam quase 10% da renda só para pagamento de juros
Juros altos e endividamento de curto prazo elevam peso das dívidas no orçamento familiar

Foto: FÁBIA PRATES/SECOM
MAELI PRADO - As famílias brasileiras comprometem quase 10% da renda apenas com o pagamento de juros, em um sintoma da baixa qualidade do endividamento no país, composto em sua maior parte por obrigações de curto prazo e taxas elevadas.
Em maio último, dados do Banco Central mostram que esse peso alcançou 9,86%, o maior da série histórica iniciada em 2005 e pouco acima do patamar atingido em 2023, quando houve o lançamento do programa Desenrola, criado para estimular a renegociação de débitos.
Atualmente, o equivalente a 27,79% da renda das famílias é direcionado ao pagamento de amortização de dívidas mais os juros — ou seja, as taxas representam mais de um terço do total. Esse percentual é quase o triplo da média de 17 países desenvolvidos, cujos dados de dívidas das famílias em relação à renda são disponibilizados pelo BIS (Banco de Compensações Internacionais). Nos Estados Unidos, por exemplo, as famílias destinam o equivalente a 8% do orçamento ao pagamento de dívidas, e no Japão, o peso é de 7,8%.
“No mundo todo existe comprometimento de renda com dívidas. A diferença é que no Brasil a maior parte é com débitos relacionados a cartão de crédito ou empréstimo pessoal, que possuem taxas maiores”, afirma Rafael Schiozer, professor titular de finanças da FGV-EAESP.
Números do BC ajudam a explicar essa diferença. O comprometimento da renda das famílias brasileiras especificamente com o crédito imobiliário, que possui os menores juros entre as diferentes modalidades de empréstimos e é acessível a poucos brasileiros, é de apenas 2,13%. Ou seja, o restante, ou 25,66% do comprometimento da renda das famílias, roda a juros mais altos.
Estêvão Kopschitz, economista do Grupo de Conjuntura do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aponta que grande parte das dívidas brasileiras é formada por operações de crédito de curto prazo, que são exatamente as que possuem taxas maiores.
“Em países desenvolvidos, o endividamento das famílias é bastante voltado para pagar crédito habitacional, que tem a garantia do próprio imóvel e que não possui um peso tão grande na despesa mensal porque os juros são baixos”, afirma.
Sinal amarelo
Os dados do BC mostram que o peso do pagamento de juros sobre o orçamento familiar teve um pico em 2023 e caiu em 2024, mas voltou a crescer do final do ano passado para cá. Essa piora no cenário tem a ver com dois fatores: uma combinação perigosa de juros mais altos e mais crédito.
Em junho, último dado disponibilizado pelo BC, a taxa média anual do crédito pessoal estava em 58,3%, o maior nível desde maio de 2023. Ao mesmo tempo, nos últimos dois anos o saldo de crédito com recursos livres (que exclui os empréstimos imobiliários) saltou 23,4%.
Fábio Pina, assessor econômico da FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo), aponta que o crédito cresceu impulsionado pelo emprego e renda mais robustos dos últimos anos.
“O que explica o crescimento do peso dos juros é o fato de que tenho emprego e renda aumentando, o que na percepção do setor financeiro reduz um pouco o risco e eleva o crédito. Isso aconteceu apesar de as taxas de juros terem aumentado”, diz.
Na avaliação dele, o Brasil vive um momento de “sinal amarelo” em relação ao endividamento. Após recuar de um pico alcançado em 2023, o calote de mais de 90 dias das pessoas físicas voltou a se elevar para 6,3%, segundo o último dado do Banco Central.
O assessor econômico da FecomercioSP é autor de um estudo que mostra que os gastos com juros dos lares brasileiros cresceram 20,5% em 2024 na comparação com o período anterior. Mas, no mesmo período, a massa de renda anual das famílias avançou apenas 3,2%.
O aumento na educação financeira é apontado pelos especialistas como necessário para ajudar a reduzir o endividamento ruim, mas não é considerada uma solução única.
“O Brasil precisa de mais educação financeira. Já melhorou muito, existe uma iniciativa do Banco Central, por exemplo, de educação financeira nas escolas. Mas é necessário também um comportamento individual das pessoas, de se conscientizarem de que tomar crédito de curto prazo é mais caro”, afirma Kopschitz, do Ipea.
Para Schiozer, é necessário um consumo mais cuidadoso. “Evitar o superendividamento é, em essência, ter um consumo compatível com a renda. Sou um pouco cético em relação à educação financeira como bala de prata, acho que muitas pessoas têm consciência de que estão gastando mais do que ganham. Então, na verdade, o que é mais necessário é uma mudança de hábitos.”
Ele cita um estudo do Banco Central que mostra que o incentivo ao crédito consignado (com desconto em folha de pagamentos) pode ter um impacto negativo no consumo de longo prazo. “Depois de dois, três anos, as pessoas tiveram uma redução de consumo muito maior do que a alta logo que tomaram crédito. É um exemplo da consequência de longo prazo do superendividamento.”