Festa de Nossa Senhora da Boa Morte celebra resistência da mulher negra no Recôncavo Baiano
Em entrevista, historiador explica festejo tradicional em Cachoeira
Foto: Divulgação/ Jomar Lima
Ancestralidade, resistência, fé, religiosidade e sincretismo religioso são algumas das palavras que marcam anualmente a tradicional festa de Nossa Senhora da Boa Morte. Celebrado há mais de 230 anos em agosto, mês dedicado à santa católica, o festejo é organizado pela Irmandade da Boa Morte e reúne dezenas de mulheres negras nas ruas de Cachoeira, cidade histórica do recôncavo da Bahia, a cerca de 117 quilômetros de Salvador.
Neste ano, a festa, que é considerada Patrimônio Imaterial da Estado desde 2010, começou na sexta-feira (12) e segue até a próxima quarta-feira (17). Em entrevista ao Farol da Bahia, o historiador Rafael Dantas afirmou que a celebração religiosa é considerada uma das mais importantes da Bahia. Segundo ele, além de toda historicidade presente nos festejos da Boa Morte, o ato também representa a resistência da mulher negra no Brasil.
“A festa da Boa Morte é uma das expressões religiosas mais importantes aqui no contexto da Bahia e do recôncavo baiano. É uma tradição que une elementos da resistência de mulheres negras desde o século XIX e que perpassa todo esse tempo com muita força e muita expressão de todos os laços híbridos da questão religiosa ligada ao catolicismo baiano, além de laços das comunidades negras afrobaianas advindas deste período”, explicou Dantas.
Apesar de ser celebrada há décadas na cidade de Cachoeira, a festa da Boa Morte, segundo o historiador, surgiu na capital baiana na primeira metade do século XIX. “A Irmandade da Boa Morte surge num momento de grande enfrentamento ao contexto escravista e de atuação de mulheres de influência negra na cidade de Salvador, na região do centro antigo. Provavelmente, no entorno ou na região onde hoje conhecemos como a Igreja da Barroquinha. Em um segundo momento, após questões de tumulto e problemática naquele contorno social aqui na cidade, essas senhoras da Irmandade da Boa Morte vão para o recôncavo baiano e lá se instalam", disse.
“A tradição ligada a essa participação feminina é muito provável que beba dessas influências afrobaianas, onde a mulher tem uma relevância absurda no papel religioso. Então, temos a expressão católica, afinal o culto é referente a Nossa Senhora da Boa Morte, uma tradição muito antiga inclusive no contexto europeu, e temos também os laços muito significativos da cultura africana. Não só pelos trajes, como também pelas jóias que eram utilizadas, entre outros ritos”, completou Rafael.
Foto: Divulgação/Mário Edson
De tamanha grandiosidade, o cortejo percorre as ruas de Cachoeira com mulheres vestidas em trajes de gala, segurando velas e cantando canções religiosas. A festa de Nossa Senhora da Boa Morte é acompanhada por milhares de pessoas, entre fotógrafos e turistas de diversas partes do Brasil e do mundo.
Fim da escravidão
Conforme a Irmandade da Boa Morte, o culto a Nossa Senhora da Boa Morte é oriundo de um pedido pelo fim da escravidão feito pelas africanas a santa católica. Naquela época, as escravas pediam proteção e uma morte tranquila, sem martírio.
A Irmandade é uma confraria religiosa afro-católica que, na sua origem, foi responsável pela alforria de inúmeros escravos. “A celebração tem o objetivo de fazer culto à boa morte. Naquele período, no século XIX, tínhamos muito essa crença de um caminho além. É um culto para você registrar esse mundo terreno mais ligado ao mundo do além, onde você tem finalmente o descanso merecido. Mas a principal questão entre as irmãs [da Boa Morte] é o culto a Nossa Senhora”, concluiu Dantas.