Luz no Direito

Limite Penal

"Vírus espião" como meio de investigação: a infiltração por softwares

Por Da Redação
Ás

Limite Penal

Foto: Natalia Lukiyanova

Recentemente, o WhatsApp lançou nota orientando seus usuários para que atualizassem a versão do aplicativo tendo em vista a descoberta de uma falha de segurança capaz de tornar vulnerável o aparelho utilizado. A falha possibilitaria a instalação remota de um spyware próprio para ter acesso a dados do aparelho. Diante de tais fatos, cabe a reflexão quanto às novas tecnologias digitais e como estas têm modificado procedimentos de investigação criminal. Seria possível o Estado investigador utilizar softwares para alcançar (fontes de) provas e assim incriminar pessoas? Quais seriam os limites dessa metodologia?

A utilização de malware na investigação criminal decorre do impacto significativo protagonizado pela informática no âmbito jurídico. O malwarecomo método de obtenção de prova é um software malicioso instalado clandestinamente pelo Estado em um sistema informático, uma ameaça destinada a quebra da confidencialidade e integralidade dos dados nele contidos. Trata-se de um software previamente programado cuja função é infectar dispositivos para tornar possível o acesso remoto às informações, comunicações ou arquivos neles armazenados, ou, ainda, acessar suas funcionalidades, independentemente de estarem ativas ou não.

Após instalado, cria-se um portal de acesso (backdoor) que possibilita uma comunicação entre o dispositivo monitorado e o centro de comando. Portanto, a utilização de malware nas investigações permite ao centro de comando um controle remoto capaz de realizar de maneira oculta o monitoramento, em tempo real, de áudio, vídeo, funções de microfone e câmeras, fluxo de dados e comunicações, memória e armazenamento e geolocalização do dispositivo móvel alvo, dentre outras funcionalidades por vezes disponíveis, como o acesso a senhas de usuários do sistema informático alvo, documentos, correio eletrônico e histórico de páginas da web.

Em alguns países como Espanha, Itália e Estados Unidos, já existem casos de uso da metodologia investigativa, contudo, diversas são as polêmicas geradas, principalmente no que tange à restrição demasiada de direitos fundamentais. Mesmo que a intervenção estatal por meio da tecnologia se mostre sutil, por vezes fronteiras de proteção (intransponíveis) são rompidas durante a persecução penal e, portanto, se faz necessário o (re)estabelecimento de (novos) limites para preservar garantias individuais.

Mas e em relação ao ordenamento jurídico brasileiro? Seria lícita a investigação criminal informática a partir da infiltração por software?

De imediato, como afirmado acima, trata-se de método de obtenção de prova, de tal sorte que necessita de uma lei processual que o regulamente, tendo em vista que o Estado não poderá incidir em um direito fundamental sem prévia permissão legislativa (nulla coactio sine lege). Neste ponto, não há que se falar na utilização de métodos atípicos de obtenção de prova, justo pelo necessário respeito à legalidade processual. É pela legalidade processual que se permite balizar a aplicabilidade do método utilizado ao conteúdo do direito fundamental restringido. E sobre essa lógica, relembramos Jorge Miranda: “não são os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais”.

Não há, atualmente, lei processual que contemple o direito fundamental restringido pelo referido método de obtenção de prova. Dizer isso, por evidente, é dizer que não se trata simplesmente de interceptação da comunicação de dados, logo, incompatível com a Lei 9.296/96; ademais não se trata — tão somente — da restrição ao direito à livre comunicação. Muito menos haveria que se falar em uso análogo dos dispositivos processuais referentes à busca e apreensão (e custódia) de provas físicas. O uso de procedimentos análogos de busca e apreensão para provas físicas não contempla as peculiaridades de preservação da prova (custódia), o que poderá invalidar o material probatório.

Em verdade, trata-se de um novo direito fundamental que surge em decorrência da “dataficação” da vida resultante da dinamicidade atrelada à sociedade de informação. A intrusão sub-reptícia de malware em dispositivos informáticos, para além de incidir no direito à livre comunicação, intimidade, privacidade, autodeterminação informativa etc., restringe substancialmente o direito fundamental à integridade e confiabilidade dos sistemas informáticos.

Proteger os sistemas informáticos e, por evidente, os dados inseridos neles é proteger os sujeitos cujos dados fazem referência. Essa proteção demarca o critério de legitimação política daquilo que Perez Luño denominará de “sistemas democráticos tecnologicamente desenvolvidos”, justo pelo fato de que a proteção de dados e a liberdade informática fazem parte do status que constitui o cidadão.

A Constituição Federal, artigo 5º, parágrafo 2º não exclui a possibilidade de incorporação deste e de outros direitos que pelo seu conteúdo tenham statusde fundamentais. Trata-se, pois, da denominada cláusula de abertura. Ou seja, para além dos direitos fundamentais expressamente dispostos na Carta Magna (fundamentalidade formal), ha? que ser observada a fundamentalidade material do direito que se refere à estrutura básica do Estado e da sociedade.

Logo, quanto à integridade e confiabilidade do sistema informático como direito fundamental, é evidente que seu conteúdo o incorpora ao conceito material de direitos fundamentais. De tal sorte, pela análise feita, o direito à integridade e confiabilidade do sistema informático, pelo seu conteúdo, compõe a estrutura básica do Estado Democrático brasileiro.

Sendo um direito fundamental, para que o Estado o restrinja na efetivação de investigações criminais mediante malwares dever-se-á – antes de tudo — de uma norma constitucional autorizadora. Além disso é claro, necessitar-se-á da norma reguladora (lei processual penal) do referido instituto processual penal de obtenção de provas.

Portanto, é preciso autorização constitucional e regulamentação processual para que tal meio de obtenção de prova seja utilizado, sob pena de estarmos diante de uma prova ilícita expressamente vedada pela Constituição e pelo CPP.

Por Aury Lopes Jr e Carlos Hélder  Carvalho Furtado Mendes (Site Conjur)

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