Michel Telles

Marina de la Riva lança o álbum "Raices Compartidas"

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Marina de la Riva lança o álbum "Raices Compartidas"

Foto: Divulgação

As imagens, embora uma terrível e outra maravilhosa, da Gatesca Pantomima e da Damisela Libertad – a primeira referindo-se ao famoso quadro de Goya sobre os horrores da guerra e a outra quase o seu oposto, a “Senhorita Liberdade” – aparecem juntas nos muitos questionamentos da lindíssima canção “Y que sabes tu?”, a única nova e autoral de “Raices Compartidas”, o quinto álbum da cantora e compositora cubano-brasileira Marina de la Riva.

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Entre os extremos da guerra e ânsia por liberdade, a canção questiona:

"Que sabes tu de mis dolores
Que sabes tu de mi soledad
De los dias que me quedo
Mirando hacia el mar”

E os questionamentos da canção não são nada arrogantes, e sim sinceros. “Y que sabes tu?”, que pode realmente saber o ouvinte brasileiro da realidade artística e existencial de uma cantora brasileira que tem raízes tanto aqui como em Cuba – de onde veio seu pai e toda a sua linhagem paterna, sua língua tão materna quanto o português, sua sensibilidade musical igualmente bilíngue – que mira e vive sobre o mar Atlântico que separa seus dois países.

“Raices Compartidas”, que lança “Y que sabes tu?”, parece generosamente querer nos ajudar a saber da música, cultura, da intensa História e da vida real que há - mais do que entre Brasil e Cuba – entre as canções escritas no Brasil em português e as em castelhano compostas em Cuba e todos os países hispânicos. Em quase todas as nove faixas do álbum essa relação aflora de forma explícita e emocionante.

O clássico moderno “Cachito”, escrito pela compositora mexicana Consuelo Velásquez e popularizado no mundo por Nat King Cole e no Brasil por Emilinha Borba no final dos anos 1950, ressurge suingadíssima e sensual num dueto de Marina de la Riva com Ney Matogrosso – talvez o cantor brasileiro contemporâneo que mais naturalmente incorpore influências latinas na sua música.

Da mesma autora, o bolero clássico “Besame Mucho” traz essa mesma relação de forma mais sutil. Acompanhada do violão do argentino (que já morou no Brasil) Torcuato Mariano e de orquestra de cordas, Marina faz o bolero como se fosse uma bossa nova, bem diferente, mas referindo-se à célebre gravação de João Gilberto que transformou para sempre o clássico bolero também numa clássica bossa nova. Há, portanto, duas formas igualmente clássicas de se fazer “Besame Mucho”, como bolero e da forma “brasileira”. Para acentuar suas ‘raices compartidas’, Marina de la Riva escolhe a segunda, canta em espanhol, na forma brasileira.

E para mostrar que isso não é nada óbvio, Marina faz um “Influência do Jazz”, tema igualmente clássico da Bossa Nova escrito por Carlos Lyra, de forma latina, ou “afro cubana”, como diz a letra da canção brasileira. Quando a música foi lançada, em 1963, Tom Jobim dizia que se tratava de “uma canção subliminar”, ou seja, que apesar de criticar a influência do jazz afro-cubano no samba – com, por exemplo, a acentuação rítmica no chamado “tempo forte” do compasso, e não no “tempo fraco”, a tal síncope do samba – de certa forma a incorporava. Misturando – até mais que compartindo – suas raízes, Marina incorpora essa sutil e irônica observação de Jobim à canção de Carlos Lyra. E faz um “Influência do Jazz” de fato com influência do jazz afro-cubano.

Já uma ‘salsa brasileira, meio Rio, meio Havana’ como “Ai, ai, ai, ai, ai”, de Ivan Lins e Vitor Martins parece ser tanto uma síntese de “Raices compartidas” que mereceu no álbum duas versões, a original em português, e uma em castelhano vertido pela própria Marina de la Riva – é bom lembrar que volta e meia, ela faz versões de canções brasileiras para a sua outra língua, sendo a mais conhecida a que escreveu para “Adivinha o quê”, que gravou com o autor Lulu Santos. E na forma que Marina e seus músicos escolheram para fazer, “Ai, ai, ai, ai, ai” saiu mais lenta e suingada, mais pesada e muito mais cubana que a versão original consagrada pelo autor Ivan Lins. Como fez um “Besame mucho” brasileiro, “Ai, ai, ai, ai, ai’ saiu cubano, raices compartidas, raízes compartilhadas, realmente.

Marina levou tão a sério esse “compartir” as duas culturas que resolveu fazê-lo em campo neutro. Nem no Rio, nem em Havana, “Raices Compartidas” foi gravado em Los Angeles, cidade em que tanto artistas e músicos cubanos e hispânicos em geral – não fosse aquilo um histórico território mexicano – e brasileiros fizeram História. No estúdio em que ela gravou, o East West Studios, por exemplo Tom Jobim gravou seu célebre disco com Frank Sinatra, em 1967.

Sob a produção do brasileiro radicado em Los Angeles, Moogie Canasio, que já ganhou o Grammy principal com artistas como Sérgio Mendes e João Gilberto, Marina conseguiu arregimentar músicos de ponta do mercado latino e norte-americano. Além de Torcuato Mariano em arranjos e violão de “Besame Mucho”, contou com o também argentino Cheche Alara, no piano e arranjos, o peruano Ramon Stagnaro (que infelizmente faleceu por Covid um pouco depois), nos violões e guitarra, o cubano Carlito del Puerto, no baixo, o americano Vinnie Colaiuta, na bateria, os brasileiros Jessé Sadoc, no trompete e Rafael Rocha, no trombone, e as percussões divididas pelos cubanos Luis Conte e Rafael Padilla – que tocam como só cubanos conseguem tocar, um sotaque de percussão inimitável - além de orquestra de cordas.

Tal exuberância musical mostra-se fluente tanto em antigas canções cubanas como “La gloria eres tu” que, embora recentemente tenha voltado à fama na voz de Luis Miguel, é uma canção dos anos 40 de José Antonio Méndez, como da contemporânea e pop “Humo de Tabaco”, do cubano radicado no Canadá Alex Cuba. Ou ainda em um bolero cubano clássico “Como Fue”, de Ernesto Duarte Brito, recriado por Marina “comme il faut”, cubaníssima. Tão cubana, que o bongô utilizado por Rafael Padilla na nova gravação foi o mesmíssimo instrumento usado no registro clássico da orquestra de Benny Moré, nos anos 40, presente do tio que tocou naquela ocasião.

Há, basicamente, duas formas de lidar com essa intensa relação da música cubana com a brasileira: pelo viés quase folclórico das rumbas, boleros e salsas dançantes, ou pelo viés da canção moderna e política da Nova Trova, de autores como Silvio Rodriguez e Pablo Milanés. Marina de la Riva, cubana e brasileira que é, vai por um caminho mais sutil, o do gosto latino contemporâneo, mais ligado aos ouvidos de hoje, seja em Los Angeles, Havana ou Rio. Sem deixar de ser político nem dançante, como comprovam os versos generosos de “Y que sabes tu?

“Que sabes tu de mis anhelos,
De la Gatesca Pantomima
De la Damisela Libertad
Que no me saca a bailar”.

Entender os anseios, os medos, mas sempre tirar o par para dançar é o que une as linguagens musicais que Marina de la Riva aqui junta e traduz como uma nativa dos dois mundos.

Por Hugo Sukman

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