Massaranduba: lugar do povo pobre onde o prefeito rico não se coloca
A favela da Bahia vista por um não baiano
Foto: Reprodução
O consultor de TI Rafael Dornelles conheceu a favela de Massaranduba perdido pelo aplicativo Waze e concluiu que o prefeito ACM Neto nunca esteve lá. Leia o artigo.
Eu não sou da Bahia mas eventualmente, tenho que estar na Bahia por causa do meu trabalho. E da última vez que estive lá, dia 10 de junho, eu estava em Salvador. Frequento Salvador tem uns 6 anos, tenho grande amigos na cidade, tenho CEP e pago imposto, então mesmo não sendo baiano, me sinto apto a falar sobre o que acontece nesta cidade.
Salvador é uma cidade legal mas é estranha. Em condições que seriam “normais”, que não nestes tempos de pandemia, a cidade é boa, apesar de ser uma ilusão de ótica: você chega achando que todo dia vai subir a ladeira do Curuzu, que vai quebrar o tchan dia sim dia também, vai dar a volta no mundo e ver o mundo girar e, na real, não tem nada disso: o mundo dorme em Salvador as 10 da noite. Onze ou meia noite se você for para o Rio Vermelho, mas se você optar por um restaurante na Marina por exemplo, ichi, nem senta porque vão te tocar! Não é que os caras não queiram atender, descobri depois de ter xingado metade dos baianos, coitados. É porque não tem ônibus para levar os funcionários para casa depois das 22:30, 23:00 horas. Então, é preciso “tocar” mesmo o cliente, não tem jeito! E por que uma cidade turística não tem transporte para que a vida noturna dos restaurantes com lindas vistas para o mar se movimente? Porque isso não dá ibope para o prefeito. Simples assim. O prefeito e o povo que mexe com as linhas de ônibus vivem em pé de guerra porque, segundo soube, Salvador era a única cidade do Brasil que cobrava Outorga Onerosa do transporte público. E a galera que investe no transporte não estava dando conta de pagar e o prefeito não quer ajudar e, no fim, dane se o comerciante, o trabalhador e o...turista.
Lembrei dessa história porque acabei de receber do meu amigo Gilberto, que trabalha em um site chamado Farol da Bahia, onde vou pedir a ele que publique este manifesto, a notícia de que o prefeito vai estender as medidas restritivas pelo coronavírus até julho. Lembrava do ocorrido quando, no dia 10 de junho eu estava em Salvador e, ao decidir ir até a Igreja do Bonfim, eu me perdi e fui parar dentro do bairro do Uruguai e da favela chamada de “Massaranduba”. O Waze resolveu me levar por um caminho, onde atravessei o tal bairro com nome sul americano e favela com nome daquele personagem que “vai dar porrada” e, no fim, apesar da natural preocupação dos covardes que sempre acham que o pior só acontece dentro da favela, o que não é verdade, eu pude conhecer uma Salvador que ainda não tinha visto tão de perto: a Salvador miserável, onde pessoas moram em cubículos de alvenaria sem acabamento, amontoados um em cima do outro e, ali, vivem com suas quantitativas famílias. Vi uma Salvador diferente da que eu vejo do meu prédio, dá para ver o mar e belos outros edifícios onde percebe-se, o ar condicionado se faz presente em todos os cômodos. A tarde estava quente, tão quente, que apesar do ar do carro estar ligado, eu ainda sentia calor. E no transito parado dentro da favela, eu podia ver os suor das pessoas, carregando sacolas, caixas, carregando crianças que queriam ficar na rua para correr, mas o espaço não permitia. A rua, estreita e ocupada por carros nas duas mão, fazia uma procissão de testemunhas daquele mundo onde o tijolo não coberto nas paredes e os emaranhados de fios, são as grandes estrelas da decoração e um campo de areia no meio de tudo, lotado de meninos disputando um espaço para correr atrás de uma bola, poderia ser muito mais visível a quem se condói com a dor alheia, do que qualquer final de copa do mundo. O vento não passa por ali, porque não tem espaço. É quente, quente e lotado de pessoas, algumas nas pequenas janelas de seus barracos, se abanando e deixando para quem as via de longe, a pergunta sobre o que significaria aquele olhar vazio, diante de um lugar tão cheio de impossibilidades.
O trânsito demorou uns 25 minutos para sair da fila indiana, me levar para outra favela onde ficou mais uns 15 e, só depois, deixar que eu visse o “Caminho de Areia” onde daria no Bonfim. Mas acho que, de alguma forma, olhando aquelas pessoas, minha visita ao Senhor do Bonfim já estava feita e minha indignação com os desmandos de um prefeito, que não é da minha cidade, mas para quem eu pago tributos, me deixou absolutamente indignado. Como manter aquelas pessoas ainda mais presas em suas já tão limitadas vidas? Que loucura é esta deste senhor que se diz “gestor” de afirmar que, impedindo qualquer daquelas famílias de ir a praia, ele vai impedir o “contato social” e assim, evitar que o coronavírus se propague? Esse tal de ACM Neto é de Salvador mesmo? Já foi lá no Uruguai ou na favela do Massaranduba? Já viu o tamanho das casas, onde elas se localizam – que não tem ventilação – e como elas ficam em seus ambientes lotados de pessoas que, mesmo com muito esforço, seria humanamente IMPOSSÍVEL haver um distanciamento? Ele já viu a quadra de areia onde meninos se amontoam por um espaço para aliviar as tensões de serem filhos da falta de igualdade? Não seria melhor deixar os meninos dividirem o espaço da areia da praia? Deixar aquela mãe levar a criança dela para brincar em um lugar ventilado ao invés de ficar correndo no calor do sol baiano, entre carros, sem vento, com muitas pessoas indo e vindo nos pedaços de calçadas disponíveis? Onde esse cidadão que se diz prefeito mora? Com certeza, não é onde eu passei. Porque se fosse, ele saberia o quão mesquinho foi tirar destas pessoas o pouco do nada que elas tem, mas que, por ser da natureza, dá esperança, faz sorrir quando vem a onda e refresca o calor sufocante de uma vida dura e sem oportunidades. Miserável é a definição correta para atitudes hipócritas como estas que estão sendo tomadas pelo prefeito de Salvador. Muito mais miserável do que a vida de qualquer cidadão morador da favela que tem a sua liberdade roubada pela hipocrisia dos desmandos políticos de quem devia, pelo menos, tentar se colocar no lugar deles. Um lugar onde o tijolo aparece, quente, abafado, pequeno, cheio de gente, sem lazer e sem chance de reclamar. O lugar do povo pobre onde parece que o prefeito rico, nunca teve interesse em estar.