MPF solicita revogação de norma que prevê cirurgia precoce de designação sexual para crianças intersexo
Segundo a Instituição, procedimento contraria orientações internacionais, assim como a própria legislação brasileira
Foto: Ministério da Saúde
O Ministério Público Federal (MPF) encaminhou uma recomendação ao presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) para que revogue ou anule a Resolução 1.664/03 publicada pelo colegiado, que prevê investigação precoce para definição de gênero/sexo de crianças intersexo. A norma considera "o nascimento de crianças sem sexo determinado uma urgência biológica e social” e estabelece que o procedimento cirúrgico nesses casos deve ser feito o mais precocemente possível, com o objetivo de adequação ao sexo masculino ou feminino.
A solicitação foi emitida pela procuradora da República Ana Paula Carvalho de Medeiros, em inquérito aberto no Rio Grande do Sul. O termo intersexo é usado para se referir a pessoas com características sexuais que não se encaixam inteiramente no conceito típico de feminino e masculino. A resolução do CFM trata essa condição como “anomalia de diferenciação sexual", o que, segundo o MPF, é discriminatório. “A expressão patologiza e estigmatiza pessoas em razão de suas características sexuais, induzindo à realização de cirurgias e outros tratamentos não-essenciais", afirma a procuradora no documento.
Segundo o Ministério Público Federal, esse tipo de abordagem e orientação para a realização de cirurgias de designação sexual em crianças para enquadramento a padrões sociais contraria orientações internacionais, assim como a própria legislação brasileira. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil integra, recomenda aos países-membros que realizem as modificações necessárias em suas legislações e políticas, a fim de proibir os procedimentos médicos desnecessários em crianças e adultos intersexo, quando sejam realizados sem seu consentimento prévio, livre e informado, exceto em casos de risco médico ou de necessidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) também garante aos menores o usufruto de todos os direitos fundamentais “sem discriminação de sexo". De acordo com a recomendação do MPF, para preservar a integridade física e mental das crianças é preciso "assegurar-lhes um ambiente que promova seu desenvolvimento saudável e pleno, em consonância com os princípios fundamentais dos direitos humanos e a proteção integral que lhes é devida", sem fazer uso de "intervenções cirúrgicas invasivas e irreversíveis".
Além de recomendar a revogação da resolução, o MPF também quer que o Conselho Federal de Medicina, no caso de emitir nova regulamentação, siga as diretrizes listadas pela Procuradoria Federal do Cidadão (PFDC), especialmente, não caracterizar a intersexualidade como patologia; à exceção dos casos em que a intervenção seja necessária à preservação da vida e da saúde, não realizar procedimentos cirúrgicos em pessoas intersexo, para fins de conformação aos padrões feminino/masculino, até que elas tenham idade ou maturidade suficientes para tomar decisão própria e informada sobre o tema e proibir intervenções médicas motivadas por questões sociais em pessoas sem idade ou maturidade suficientes para consentir;
O documento pontua ainda que as crianças intersexo que apresentem risco de saúde ou vida em razão dessa condição devem passar por tratamento médico ou intervenção cirúrgica com o objetivo de salvar suas vidas, sem que sejam realizados procedimentos desnecessários e precoces, baseados em estereótipos de sexo e gênero. Além disso, sempre que essas pessoas precisarem de cuidados de saúde, os serviços devem ser prestados por equipes multidisciplinares compostas não só por médicos, mas também por outros profissionais, tais como psicólogos, assistentes sociais e especialistas em bioética. O CFM deve responder ao MPF se acata a recomendação no prazo de 90 dias.