PEC das drogas volta a ser debatida no Congresso; entenda o que muda com a proposta
CCJ da Câmara analisa o texto nesta terça (4)
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/Arquivo
BRASÍLIA -- A PEC 45/2023, que prevê a criminalização do porte e posse de drogas, independente da quantidade, será analisada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (4). No colegiado, o relator é o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), que deve apresentar um parecer favorável ao tema. Na sessão, os deputados também podem pedir vista, o que adiaria a votação por, no mínimo, duas sessões do plenário da Casa.
O Senado aprovou a proposta em abril, com apoio da maioria dos senadores. Existe, no entanto, um movimento contrário às medidas impostas pelo texto, de autoria do presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
A Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, chamada de PEC das drogas, insere no artigo 5º da Constituição Federal a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga ou entorpecente sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Especialista em direito penal, o advogado criminalista Oberdan Costa explica que, caso a PEC das drogas seja aprovada, a Constituição ordenará que o porte para consumo pessoal seja criminalizado e, assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) não poderia, por exemplo, descriminalizar a ação.
“O Tribunal tem a missão de interpretar a Constituição, sem poder, em teoria, ir contra ela. Além disso, o legislador comum também não poderá usar uma lei convencional para modificar a Lei de Drogas no sentido de descriminalizar o porte para consumo pessoal”, explica o advogado.
Atualmente, a Lei de Drogas do Brasil, sancionada em 2006, já criminaliza o porte e posse de drogas, mas o ato é considerado "sui generis", ou seja, o usuário está sujeito somente às penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa. “É uma infração penal, mas que não sujeita a prisão ao agente”, diz Oberdan.
O especialista detalha ainda que o Brasil não adota um sistema de diferenciação entre traficantes e usuários por critérios fixos legais, mas sim por entendimento do juiz em cada caso. Ou seja, mesmo quem é preso portando pouca quantidade de maconha, por exemplo, se estiver em um contexto e com instrumentos que sugiram a comercialização, como dinheiro trocado e balança de precisão, pode responder processo criminal como traficante.
PEC das drogas pode aumentar desigualdades?
A socióloga Nathalia Oliveira, cofundadora da Iniciativa Negra e coordenadora da Comissão de Legislação, Normas e Articulação Interinstitucional do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad), acompanha a discussão sobre a PEC em Brasília. Segundo ela, a proposta abre precedentes para a manutenção das desigualdades e aumento da violência, principalmente contra a população negra.
A especialista reforça possíveis consequências negativas com a aprovação da PEC 45/2023. Confira:
- Possível afastamento de pessoas que usam drogas da rede de saúde pública e um reforço de estigma sobre essa camada da população
- Superencarceramento por delitos relacionados a drogas
- Aumento do potencial discriminatório das abordagens policiais e violência contra a população negra e de favelas
- Elevação dos custos da Lei de Drogas aos cofres públicos, além da quebra de compromissos internacionais e tratados pela garantia de direitos das pessoas que fazem uso de drogas.
Entenda os argumentos da especialista
Para Nathália Oliveira, a aprovação da PEC das drogas cria um comando indireto de criminalização via Constituição Federal, o que, segundo ela, abre precedentes para rever leis ordinárias já relacionadas às drogas. Para a especialista, com a tramitação da proposta, é crescente também o movimento de endurecimento de penas para usuários não só no Congresso Nacional, mas em estados e municípios.
A PEC aprovada no Senado mantém a distinção entre usuários e traficantes, que é garantida, também, na lei 11.343/2006. “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”, diz a atual Lei de Drogas do país.
Para especialistas, no entanto, o problema é justamente a falta dos critérios fixos na lei de 2006 e na própria PEC das drogas, que não determinam como deve ser feita a diferenciação entre quem está com a droga para uso pessoal e quem é traficante. De acordo com Nathalia Oliveira, isso abre margem para que a população negra seja mais afetada em periferias e favelas do Brasil, em razão de ações policiais desiguais em bairros pobres e nobres.
“A lei é um texto, quem opera as leis são os agentes do Estado, então quem faz a abordagem nas ruas são os policiais, e em mais de 60% dos casos por delitos relacionados a drogas. O único testemunho são dos próprios policiais da ocorrência, o que já deveria ser entendido como uma questão arbitrária, mas o Ministério Público fecha os olhos para isso e os juízes fazem o sentenciamento de sujeitos com penas de prisão grandes por conta do tráfico de drogas. Como essa distinção acontece na prática? Uma ação dura da polícia nos bairros de periferia e nas favelas e uma benevolência nos bairros da classe média”, denuncia a especialista.
Afastamento de usuários do tratamento
Para a cofundadora da Iniciativa Negra, inserir na Constituição Federal a criminalização do porte e posse de drogas pode ainda afastar os usuários da rede pública de saúde. Nathalia argumenta que o medo da prisão afasta esse público cada vez mais do tratamento que precisam para lutar contra a dependência química.
“O fato de algumas substâncias estarem no hall de proibição já faz com que muitas pessoas não procurem os serviços de saúde pública, ou mesmo quem é acompanhado constantemente por serviços de saúde. Muitas vezes é possível perceber que esses usuários não declaram o seu uso de drogas. E com o medo de serem criminalizados isso vai cada vez menos aparecer durante a consulta”, diz. “Esse sujeito vai ficar com receio de procurar o serviço público por medo de ser preso”, completa.
Julgamento do STF sobre a descriminalização
Ao mesmo tempo que o Congresso Nacional discute a PEC 45/2023, o Supremo Tribunal Federal analisa uma possível descriminalização de maconha para uso pessoal. O julgamento foi adiado no dia 6 de março, após um pedido de vista do ministro Dias Toffoli, e ainda não há uma data para retomada. Antes do julgamento ser interrompido, o placar estava em 5 a 3 pela descriminalização.
Mais especificamente, o Supremo julga a constitucionalidade do Artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006), que diferencia o usuário do traficante, com penas alternativas à prisão. Apesar de fazer a diferenciação, a lei mantém a criminalização do porte e posse de drogas, mesmo que para uso pessoal. Assim, os usuários ainda podem ser investigados por inquéritos policiais e em processos judiciais.
Nathalia Oliveira explica que o STF começou a discussão para avaliar a constitucionalidade do artigo 28 - que determina ser crime portar substâncias e o uso de drogas - mas com o passar do tempo acabou recuando para tratar especificamente da maconha.
Com o poder de parar o julgamento no STF, a tramitação da PEC 45 cria um embate entre o Legislativo e Judiciário. Nathalia reforça, porém, que o entrave cria uma cortina de fumaça para a questão racial por trás desse processo.
“O que realmente está em jogo é um ataque direto às vidas negras, que tem já por conta dessa lei de drogas de 2006 um efeito devastador nas comunidades negras, de criminalização de sujeitos em território pobres, ações arbitrárias e violentas da polícia, a bala perdida que sempre encontra o endereço na favela, o encarceramento exponencial de sujeitos negros. Então a gente entende que esse ataque é disfarçado de mural, na verdade ele vem para afirmar um costume no Brasil que é de racismo”, finaliza.
Quais argumentos a favor da PEC?
Para entender o que afirmam os defensores da PEC das drogas, o Farol da Bahia resgatou argumentos do autor da medida, senador Rodrigo Pacheco, e de outros parlamentares que também já demonstraram apoio publicamente à medida.
No texto da Proposta de Emenda à Constituição, Pacheco argumenta que a saúde é direito de todos e dever do Estado, por isso, a “prevenção e o combate ao abuso de drogas é uma política pública essencial para a preservação da saúde dos brasileiros”. Ao sugerir a medida, o senador ainda chama a atenção para os danos que o uso de entorpecentes causam às famílias brasileiras.
O presidente do Senado também aponta que inserir a criminalização do porte e posse dessas substâncias na Constituição é importante por considerar que “não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las". Segundo o texto, com a comercialização, o traficante consegue lucrar e adquirir armamento para ampliar o poder dentro de um território.
Pacheco afirma que o julgamento do STF tem ameaçado esse entendimento e cita como argumento as medidas impostas pela Constituição quando se trata de tráfico e uso de drogas. Confira:
- No art. 5º, a Constituição equiparou o tráfico aos crimes hediondos e autorizou a extradição de cidadãos naturalizados que tenham se envolvido nesse crime
- No capítulo da Segurança Pública, incumbiu à Polícia Federal, sem prejuízo das demais forças, “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”
- A Carta Magna de 1988 também determinou, no art. 243, a expropriação de terras utilizadas para o plantio de drogas e a apreensão de quaisquer bens e valores decorrentes do tráfico
- No Capítulo VII, por força da Emenda Constitucional nº 65, de 2010, estabeleceu explicitamente, no âmbito da proteção integral, a necessidade de “programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins”.
Assim, Pacheco finaliza ao afirmar que a PEC 45/2023 garante mais robustez ao que já é estabelecido na Constituição quando se trata de drogas ilícitas.
Após o fim da votação que aprovou em dois turnos a PEC das drogas no Senado, no dia 16 de abril, o relator da proposta, senador Efraim Filho (União Brasil-PB), afirmou que uma eventual descriminalização das substâncias ilícitas seria "um atestado de falência do poder público".
"Hoje, e os estudos e pesquisas demonstram isso, quando se pergunta a um jovem porque ele não usa droga são duas respostas: uma porque faz mal, a outra porque é proibido. Se nós passarmos a percepção de que o Estado permite e orienta em determinados casos o consumo de drogas, essa parte do poder fica limitado. Na verdade, descriminalizar as drogas é um atestado de falência do poder público, é dizer: 'eu sou incapaz de coibir, sou incapaz de fiscalizar, então eu vou descriminalizar para transferir essa responsabilidade do Estado (Poder Público) para as famílias", declarou o senador.
Definido como relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) também apoia a medida e afirma ainda que pretende “atribuir pena de prisão com atenuantes, e não simplesmente vedar prisão para usuário como atualmente consta [no texto aprovado pelo Senado]”.
Se aprovada na comissão, a proposta segue para apreciação do plenário da Câmara, onde precisa do apoio de, no mínimo, três quintos dos deputados, ou seja: 308 votos.