Precisamos de mais distorção
Foto: Reprodução
Oi, Cecília, como vai? Parei de trabalhar por um momento para te escrever. Ah, sim, está tudo bem, as pautas atendidas, entrevistas realizadas e parágrafos fluindo com naturalidade. Claro, já foram dois copos de café, conversa informal com o pessoal do trabalho na nossa redação online e bisbilhotadas no e-mail particular. É, recebi um ou outro, mas nenhum que realmente esperava ou que me surpreendeu.
Hoje vi umas fotos. Não, não minhas, de pessoas quaisquer, que assim como eu - e você - registraram certos momentos da vida. São fotos reveladas em papel, que até já estavam amareladas e confesso que acho este “efeito” bacana, como se o envelhecimento natural das coisas fosse capaz de legitimar a lembrança. Como se o dono da foto falasse “olha, isso faz tanto tempo! E ainda me recordo do dia em que foi fotografada”. Penso que gostaria de fotografar cada movimento, cada risada e cada trapalhada da minha vida. Sabe? Estamos crescendo e este processo também é passível de memória.
Mas não é simples assim, viu, Cecília. Quando vejo fotos como estas, de experiências de outras pessoas, sinto que tenho lembranças semelhantes, mesmo não fotografadas e me emociono, principalmente nas de fatos cotidianos. Sei lá porque, é quando prefiro conceber ideias no campo do sentimentalismo barato. Típico, eu sei, mas você deve levar em consideração que os anos passam, as memórias amarelam e enlouquecemos para que haja um pingo de nitidez em coisas cujos elos estão fracos.
Lembra de quando passeávamos de carro pela cidade, sem destino, sem propósito? Então, Cecília, é disso que eu falo. O corriqueiro de ontem e a saudades do hoje. Mas olha, estou te atrapalhando? Você sente algo parecido com coisas do passado? Ontem mesmo, de noite, fui deitar e queria musica. Fiquei um tempo em frente aos meus CDs, procurando algo que soasse lisérgico e atmosférico. E aí eram tantos... e cada um com uma história. Lembra, como eu me dedicava a ler sobre lançamentos e escutá-los? Mas então, demorei e não achei, porque eu queria todos ao mesmo tempo.
E é assim que me vejo em certos dias. Um computador com infinitas informações que entra em pane na tentativa de solucionar uma questão aparentemente fácil. É quanto peço ajuda aos amigos imaginários, que, no entanto, são todos uma só pessoa, eu. E percebo que tenho, sim, as respostas, sei os caminhos certeiros, mas antes trilho os mais complexos. Isso me lembra do verão de 2000, numa tarde com brincadeira de bola no quintal de sua casa. Lembra? Quando você a chutou forte contra o muro, girou o corpo e me abraçou, permanecendo assim por alguns minutos? Sem palavras e sem porquês daquele jeito ficamos.
Naquela tarde, imaginei mil coisas, mas sabia a única razão. Hoje, sinto saudades daquele abraço, dos “bons tempos”, mesmo complexos. Quando precisávamos de mais distorção, quando sentíamos o frescor das coisas e que, sim, nos lembraríamos sempre daqueles anos. Talvez você precise de fotos amareladas para ativar algumas memórias, mas sabe que a intensidade de outrora foi doce o bastante para guardar, até hoje, o sabor da adolescência.