Quilombolas no Maranhão enfrentam fogo, seca e agrotóxicos sob ameaça de morte
Em 2009, as áreas privadas que os cercam foram vendidas para a Suzano, gigante brasileiro de papel e celulose

Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
Maria Madalena Peres, 75, coletava coco babaçu na mata do quilombo de Cocalinho, em Parnarama (MA), quando percebeu o fogo. Ela correu pela estrada de terra até chegar a sua casa, no centro da comunidade, só para ver que as chamas também já haviam alcançado suas plantações no quintal.
Seu marido, Francisco Araújo, 79, o Nego Boró, tentava apagá-las, mas, a cada tentativa, parecia que elas aumentavam. Ele só desistiu por volta das 13h, quando se viu no meio da produção de capim seco, com o vento jogando fogo em sua direção. Queimou a roupa e parte do pé enquanto fugia. "Quase morri queimado", diz.
Incêndio florestal não é uma novidade para o casal, mas eles dizem que, nos últimos dois anos, o fogo está mais frequente, chegando mais perto das propriedades e se espalhando rapidamente.
Cercada por plantações de soja e milho, que desmataram a área virgem ao redor do território, a comunidade lida com as mudanças climáticas. Elas se refletem no aumento da temperatura da região e diminuição da umidade do ar --condições que amplificam o risco de queimadas.
Nego Boró e Maria perderam todas as plantações que serviriam para sua subsistência durante o ano. Mais cedo, já tinham perdido a produção de arroz por falta de chuva. "Apanhei dez sacas de arroz [cerca de 600 kg], sendo que minha roça era para dar 5.000 kg".
"Um filho de Deus que está no Mato Grosso mandou eu ir tomar conta da quinta [produção rural] dele, e não deixar os meus morrerem de fome", diz Boró, sobre como manteve a subsistência da família, que inclui os dois netos que cria.
Deus aparece frequentemente nas falas do agricultor para mostrar como ele consegue viver em meio às dificuldades. Sobre a rotina, diz: "De manhã, é esse sol quente; de noite, o calor. Mas com fé em Deus, a gente rompe esse tempo".
Em assuntos como as reivindicações de posse do território do quilombo por fazendeiros, ele pede apenas que Deus o livre, porque na terra "o que vale é dinheiro".
"Se disserem assim: 'Você não pode ficar aqui', não vou brigar com ninguém, Deus me livre. Eu procuro outro destino. E, tô sabendo, são as beiradas de rua, porque nem para o centro podemos ir, temos que ficar no meio das favelas".
Quando chegou à terra, há 46 anos, Boró encontrou 11 moradores, todos cearenses da mesma família, que haviam chegado na região em 1916 fugindo da seca. "De hora em hora aparece a notícia que vão tirar [da gente] não sei quantos hectares de terra, mas eu fico quieto. Não vou questionar, porque não vi ainda questão de pobre com rico ter resultado para o pobre, embora tenha muito direito", diz.
Quem tenta mostrar um novo resultado a Boró é a neta de um dos seus melhores amigos. Raimunda Nonata da Silva, 37, tem movido todos os meios para garantir que a terra permaneça com os quilombolas e para melhorar a qualidade de vida no local.
Cocalinho foi reconhecido como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares em 2015 e desde então aguarda a demarcação pelo Incra.
Enquanto isso, Nonata, líder da comunidade, denuncia os impactos sofridos pelas 180 famílias devido ao avanço do agronegócio, com desmatamento, pulverização de agrotóxicos e pressão para expulsar o quilombo.
É por esse enfrentamento, diz Nonata, que tem sido ameaçada de morte por fazendeiros e políticos da região. No início deste ano, ela passou a integrar o Programa de Proteção da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
Cocalinho está no Matopiba, região de expansão agrícola que, desde os anos 1980, avança sobre o cerrado de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
De fato, em meados dos anos 1980, contam os moradores, grileiros expulsaram povoados vizinhos e iniciaram o desmatamento da região, mas não entraram no quilombo graças à resistência dos mais velhos, que reivindicaram a ocupação histórica do território.
Desde então, porém, os quilombolas começaram a viver cercados por fazendas e pela devastação.
Quilombo sitiado
Em 2009, as áreas privadas que os cercam foram vendidas para a Suzano, gigante brasileiro de papel e celulose. Para Nonata, "esse foi o início do fim". "Por um lado, não teve muita perseguição, mas por outro, secou nossas nascentes e teve muita queimada. Nossos peixes foram desaparecendo", diz.
À Folha, a Suzano afirma que "o manejo adequado do eucalipto, em conformidade com as melhores práticas ambientais e sob acompanhamento técnico, não é capaz de secar rios ou nascentes" e que não utiliza fogo em nenhuma das suas operações de plantio.
As terras foram vendidas em 2019 aos grandes produtores de soja e milho. "Eles começaram a fazer desmatamento de todas as áreas que a Suzano deixava como reserva", diz Nonata. "Aí piorou a situação, não deixaram mais nada".
Para chegar a Cocalinho a partir da rodovia é necessário passar por uma estrada de terra que separa duas fazendas. Dos dois lados é possível ver o que os moradores chamam de descampado --a terra para a monocultura que, após a colheita, fica sem qualquer vegetação.
Quando o plantio está sendo feito, porém, a comunidade vê uma chuva de agrotóxicos, pulverizados por aviões. Nonata conta que, uma vez, enquanto passava pelas fazendas de moto para ir a outra comunidade, tomou um banho de pesticida.
"Cheguei cansada, com tosse, tive febre e passei muitos dias com falta de ar", diz. Segundo ela, o impacto na saúde da comunidade é grande. Moradores relatam coceira, câncer de pele, problemas na visão e doenças respiratórias como pneumonia.
João Neres, 60, teme o poder que as fazendas têm sobre a comunidade. "Se quiserem jogar uma rajada de veneno aqui, matam nós todos, como já estão matando, porque a água daqui não vale para beber. Bebemos porque, se não, morremos de sede". Segundo ele, os pesticidas também prejudicam as plantações do quilombo.
Um estudo da Fiocruz realizado em 2022 mostrou que os níveis de atrazina (herbicida usado para controlar ervas daninhas) nas águas de Cocalinho são o triplo do valor máximo permitido no país. O agrotóxico não é permitido na União Europeia.
Omissão estatal
A situação da comunidade foi levada junto a outros 14 casos ao TPP (Tribunal Permanente dos Povos) pela Campanha em Defesa do Cerrado. Apesar de não proferir sentenças, o TPP pode responsabilizar o Brasil por violações de direitos humanos previstos em tratados internacionais.
O tribunal atribuiu ao Estado e a diferentes órgãos públicos o processo de genocídio dos povos do cerrado, crimes ecológicos e econômicos, e racismo estrutural.
Apesar disso, nada foi feito para melhorar a qualidade de vida da região. Os moradores de Cocalinho afirmam que todos os desmatamentos feitos pelas fazendas são licenciados pela Sema (Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais) e que o governo do Maranhão apoia a devastação para abrir espaço à soja e ao milho.
Em setembro, uma reportagem da Folha mostrou que o Ibama cobra R$ 2,6 milhões de uma produtora de soja do governador do estado, Carlos Brandão, que tem três fazendas em Colinas (MA), a 120 km de Parnarama.
À reportagem, o governo do Maranhão afirmou que acompanha desde 2024 o conflito fundiário envolvendo o imóvel rural denominado "Boca das Tabocas", em Cocalinho. A Sema diz que todas as autorizações são emitidas de forma transparente, conforme a legislação federal. Não houve respostas sobre o apoio do governador ao desmatamento.
Mesmo nesse contexto, dizem os moradores, eles preservam a vegetação nativa que conseguem. Evitam desmatar, plantam sem agrotóxicos, guardam sementes crioulas e tentam impedir que pessoas de fora derrubem madeira e façam caça.
O avô de Nonata, Melcídio José da Silva, 93, nasceu no quilombo e era acostumado a caçar guaribas --macaco conhecido como bugio. Depois dos desmatamentos, os animais sumiram, mas há dois anos, após um incêndio, apareceram na comunidade.
Melcídio pensou em caçar, mas desistiu logo que ouviu o canto do animal. Disse ao amigo: "Deixa, ela tá é chorando de ver tudo desmatado'".


