Salvador extinguiu mais de 100 linhas de ônibus em 4 anos, aponta estudo; cidade enfrenta redução de frotas e dependência no metrô
O Farol da Bahia fez experimento utilizando os três modais disponíveis na capital baiana para conferir a mobilidade atual da cidade
Foto: Divugação/Secom-BA
Imagine chegar no ponto de ônibus e após horas de aguardo descobrir que a linha do coletivo do seu trajeto diário não existe mais. Foi o que aconteceu com Juliana Souza, de 38 anos, moradora do bairro de Santa Cruz, em Salvador, no ano de 2023. “Depois de uma hora e meia no ponto [de ônibus], eu perguntei a um vendedor e ele me disse que viu no jornal que a linha deixou de existir”, contou em entrevista ao Farol da Bahia.
Atualmente, sem a linha 0710, Juliana precisa recorrer a dois ônibus e o metrô para chegar ao destino, mas ela não é a única. Segundo dados divulgados no mês de julho pelo Observatório da Mobilidade de Salvador (Obmob), nos últimos quatro anos, entre 2020 e 2024, 134 linhas de ônibus da capital baiana foram extintas.
O Farol da Bahia buscou a Secretaria de Mobilidade Urbana (Semob) no dia 10 de julho, solicitando uma resposta referente a dados oficiais pedidos em setembro de 2023 sobre a quantidade de linhas extintas e alteradas desde 2019. A secretaria disse que a reunião dos números levaria tempo e não realizou o envio até o fechamento desta reportagem.
Em paralelo a isso, o BRT, inaugurado em 2022, expande. Do inglês "Bus Rapid Transit", o sistema de ônibus com vias exclusivas por viadutos tem a proposta de ligar a região do Iguatemi à Estação da Lapa, no centro da cidade. Com quatro linhas funcionando atualmente, as alterações de itinerários e exclusões de coletivos convencionais são enxergadas pela pasta como necessárias para reduzir o tempo de viagem do passageiro. No entanto, na prática, é bem diferente.
Farol da Bahia faz experimento
O Farol da Bahia realizou um experimento nos modais disponíveis na capital baiana para percorrer o mesmo trajeto: cruzar a cidade com ponto de partida na Estação Mussurunga e destino à Estação da Lapa. No metrô, o caminho foi concluído no melhor tempo: 41 minutos.
Já na integração do metrô com o BRT, o tempo mais longo: uma hora e 43 minutos. Somente de espera na baldeação, foram 14 minutos. Quando o tempo gasto nos veículos elétricos é observado no recorte entre as Estações Pituba e Lapa, é preciso 38 minutos para chegar ao destino.
O último percurso foi feito utilizando dois ônibus - já que a linha Mussurunga x Lapa também foi extinta - em 40 minutos a menos do que o BRT, 1 hora e três minutos. O trajeto contou com baldeação no Imbuí, área da cidade próxima ao BRT. Do segundo ponto até o destino foram 30 minutos. Confira o vídeo do experimento realizado pela reportagem:
Redução das frotas
Outro problema enfrentado pela população soteropolitana é o tempo de espera pelos ônibus, principalmente nos pontos periféricos da cidade. A estudante Zíngara Vasconcelos relatou ao Farol da Bahia que, diariamente, leva em média 50 minutos aguardando os veículos para se locomover.
“Os ônibus passam de maneiras desproporcionais. Sempre vários, em um curto espaço, e se eu perco, fico muito tempo esperando. Não sei se é má distribuição da rota, mas acontece com frequência”, contou.
Esse impacto é explicado pelos dados dos Anuários de Transporte. Os números mostram que a frota do sistema de transporte por ônibus da capital baiana caiu de 2.478 veículos em 2012 para 1.786 em 2022, totalizando uma redução de mais de 25% da frota em um período de 10 anos.
De acordo com um estudo realizado pelo Obmob, com os mesmos dados, a quantidade de veículos que transitam por hora nos principais corredores da cidade vem diminuindo a cada ano.
No corredor 1, por exemplo, entre os anos de 2020 e 2021, o número de ônibus por hora caiu de 364 para 316. A frota operante também caiu no mesmo período, de 1853 para 1776 de um ano para o outro.
Na análise do doutor em Arquitetura e Urbanismo, Pablo Florentino, a redução dos ônibus disponíveis retirou dos soteropolitanos as possibilidades viáveis de concluir um trajeto. Logo, caminhos que eram feitos de maneira mais rápida, hoje levam mais tempo, principalmente pelo período longo de espera.
“O corte de linhas vem acontecendo de uma maneira sistemática e se acentua no momento que chega o metrô e principalmente na hora do BRT. Quando você demora muito tempo para completar sua viagem, quando demora muito tempo no ponto, são os impactos da redução de uma frota. As pessoas precisam ter dignidade para se locomover na cidade e, infelizmente, Salvador é uma cidade onde isso não existe”, declarou ao Farol da Bahia.
Protagonismo do metrô e falta de integração
Na penúltima sexta-feira do mês de julho a cidade enfrentou um imenso desafio. Uma pane elétrica no sistema metroviário causou pausa na circulação dos trens na linha 2 - que realiza viagens da estação Aeroporto, em Lauro de Freitas, até Acesso Norte, no bairro do Cabula.
O problema durou cerca de três horas e Salvador vivenciou um cenário caótico, com estações, pontos e passarelas lotadas. Devido a remodelação do sistema de transporte urbano, diversos trajetos são realizados apenas pelo modal, a exemplo do roteiro Mussurunga - Rodoviária, atualmente interligado somento pelo metrô.
A malha metroviária como única opção causa superlotação do transporte e falha no lema do transporte público atual da cidade: integrar. A CCR Metrô Bahia, concessionária responsável pelo serviço, informa que recebe em média 400 mil passageiros por dia útil. Esse excesso de pessoas é sentido, claro, pelos passageiros.
“Todos os dias eu tenho que utilizar o metrô, porque não tem um ônibus que vá direto do meu trabalho para casa. Eu pego um ônibus, o metrô e em seguida um ônibus. Essa necessidade, devido à ausência de linhas de ônibus, termina superlotando o metrô, que todos os dias, em horário de pico, tem pessoas empurrando mais pessoas para caber nos vagões, nitidamente passando da capacidade da estrutura”, disse a estudante Bianca Andrade, ouvida pelo Farol da Bahia.
Para o doutor em Engenharia de Transportes e Líder do grupo de pesquisa CETRAMA (Centro de Estudos de Transporte e Meio Ambiente da UFBA), Juan Moreno Delgado, as opções de transporte não dialogam entre si, pois a cidade não foi planejada para a união dos modais. Desta maneira, apesar da proposta das viagens integradas, o sistema não flui, pois é pensado de maneira exclusiva em cada um dos transportes.
“O problema central, do meu ponto de vista está na forma como foi feita a licitação e concessão. Foram feitos sem considerar a vinda do metrô para a integração. Sobre os ônibus, as linhas são retiradas sem porque, nem como", analisou.
Juan sinaliza ainda a necessidade de participação popular nas análises e opiniões sobre o desenvolvimento do transporte público da cidade. Atualmente a prefeitura de Salvador realiza uma pesquisa anual, através da QualiÔnibus, mas os resultados não são tornados públicos. “Se não tem transparência de dados, temos a consequência, mas não podemos participar da mudança do problema”.
Qualidade dos ônibus
Dona da passagem mais cara entre as capitais do nordeste, Salvador tem a qualidade dos veículos questionadas pelos passageiros que desembolsam R$ 5,20 para embarcar nas viagens.
Os relatos são os mais diversos: janelas quebradas, elevadores para Pessoas Com Deficiência sem funcionar, portas que não fecham por completo, ninhos de baratas e amortecedores danificados.
A estudante Bianca conta que já sofreu uma inflamação na região da lombar, parte inferior da coluna, enquanto estava utilizando o transporte. “Os ônibus que eu pego, no trajeto que faço muito via orla, geralmente são velhos, estão sujos, a sensação é de que vão desmontar”, relatou.
As queixas, mais uma vez, se revelam nos dados. Segundo o Obmob, a idade útil de cerca de 50% dos ônibus de Salvador está vencida, sendo superior ao máximo definido nos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) encaminhados pelo Ministério Público da Bahia.
“Os ônibus têm um teto de vida e Salvador não fez a reposição disso, o que reflete na qualidade de vida do passageiro. Você consegue tirar uma série de consequências porque isso gera exclusão social. De um lado você tem quem está em um carro confortável para se locomover, e do outro pessoas que dividem o veículo público com as baratas. Isso não pode existir”, declarou Pablo Florentino.
Apelo de entidades
Diante do cenário, organizações da sociedade civil lançaram uma campanha que reivindica a reinstalação de parte das linhas desativadas, além da modernização e recomposição da frota da capital baiana.
Batizada como ‘Devolva Meu Buzu’, a mobilização enfatiza, que quando comparado com a década de 90, o sistema de ônibus tem 60% a menos de usuários, o que acontece devido à má qualidade do transporte ofertado.
“Essa situação vem agravando o quadro de pobreza e segregação, além de obrigar parte da população a gastar com transporte individual, a fim de evitar os ônibus lotados, quentes, sujos, barulhentos, sem conforto e nenhuma dignidade”, declarou Erica Telles, coordenadora do Observatório da Mobilidade de Salvador.
As organizações que assinam a Campanha são: Observatório da Mobilidade de Salvador, Buzu Ponto Com, Gambá - Grupo Ambientalista da Bahia, Associação Cultural e Esportiva da Comunidade de Canabrava, Sindicato dos Rodoviários, Articulação do Centro Antigo de Salvador, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto da Bahia (MSTB), Mobicidade, Centro de Estudos de Transportes e Meio Ambiente (CETRAMA/UFBA), Centro Acadêmico de Urbanismo (UNEB), União da Juventude Comunista, (UJC), Escritório Bákó, Coletivo Educar na Luta, Manifesta Coletiva, Pajeú - Resistência em Movimento e Mocambo.