Soldados israelenses relatam ordens para atirar em civis na Faixa de Gaza, diz jornal Haaretz
Relatos indicam rotina de disparos contra multidões desarmadas perto de centros de ajuda

Foto: Reprodução
Um mês após a Fundação Humanitária para Gaza (GHF, na sigla em inglês) assumir a distribuição de alimentos e outros suprimentos essenciais no enclave, em 26 de maio, a morte de palestinos que buscam ajuda atingidos por disparos israelenses passou a ser uma ocorrência comum, segundo relatos de oficiais e soldados das Forças Armadas de Israel ao jornal Haaretz. Vários testemunhos coletados pelo diário israelense sob condição de anonimato indicam que membros do Exército receberam ordens para disparar para afastar ou dispersar multidões desarmadas próximas a locais de distribuição de comida, mesmo quando não havia nenhuma ameaça presente, com um deles afirmando categoricamente: “matar inocentes virou rotina”. As informações são do jornal O Globo.
"Geralmente, vemos [os civis palestinos] de longe, a centenas de metros. Não há ameaça. Uma vez, recebi ordem de disparar um projétil contra uma multidão na costa. Em teoria, era tiro de advertência, mas isso passou a ser rotina", disse um soldado de tanque da reserva que serviu recentemente na região. "Se vemos as pessoas fugindo, por que continuar atirando? Às vezes, dizem que ainda estão escondidas e que precisamos atirar porque não saíram. Mas é óbvio que elas não saem, se toda vez que levantam para correr, nós atiramos".
O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o ministro da Defesa, Israel Katz, rejeitaram “categoricamente” nesta sexta-feira a reportagem do Haaretz, classificando as acusações como “repugnantes” e “mentiras mal-intencionadas, criadas para manchar as Forças Armadas de Israel, o Exército mais moral do mundo”. Os dois classificaram as acusações como “blood libels” (libelo de sangue, em tradução livre), termo usado contra judeus em perseguições antissemitas na Europa em séculos anteriores.
Os relatos dos soldados estão alinhados com depoimentos de civis que testemunharam os eventos, além de especialistas que, com base em vídeos verificados pela imprensa, atestaram o uso de armamentos contra palestinos perto de zonas de distribuição de comida. O Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo grupo terrorista Hamas, afirmou que 549 pessoas foram mortas e mais de 4 mil ficaram feridas nas proximidades de centros de ajuda e em áreas onde civis esperavam por comida desde 27 de maio.
'Campo de extermínio'
Ao contrário das promessas iniciais da GHF, a distribuição de alimentos tem sido caótica, com multidões desesperadas correndo em direção às pilhas de caixas, em um sistema que o chefe da agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA), Philippe Lazzarini, definiu como “uma abominação”. Desde a inauguração dos centros — são apenas quatro para todo o território — houve mais de duas dezenas de incidentes nas proximidades desses locais, que geralmente abrem por apenas uma hora pela manhã. Segundo oficiais e soldados que atuaram nas áreas e relataram ao Haaretz, o Exército israelense dispara contra pessoas que chegam antes do início da distribuição, para impedi-las de se aproximar, ou após o encerramento, para dispersá-las.
"É um campo de extermínio" disse um soldado ao Haaretz. "No local onde eu estava, entre uma e cinco pessoas eram mortas todos os dias. São tratados como força hostil, [mas] sem medidas de controle de multidões, sem gás lacrimogêneo. Apenas fogo real: metralhadoras pesadas, lança-granadas, morteiros. Depois que o centro abre, os tiros cessam e eles podem se aproximar. Nosso modo de comunicação é abrir fogo. Mas não há perigo para as forças. Não conheço um único caso de troca de tiros".
Um oficial da segurança de uma unidade da GHF disse ser “inaceitável”, ética e moralmente, o fato de que “o único meio de comunicação é abrir fogo” — e que as pessoas “tenham que tentar alcançar uma zona humanitária sob fogo de tanques, franco-atiradores e morteiros”. No entanto, a avaliação interna, segundo os soldados ouvidos pelo jornal israelense, é que, com o foco deslocado para o conflito entre Israel e o Irã, a Faixa de Gaza teria se tornado um “quintal esquecido”.
"Gaza não interessa mais a ninguém", disse um reservista. "Virou um lugar com suas próprias regras. A perda de vidas humanas não significa nada. Nem chega a ser um "incidente lamentável", como diziam".
O oficial relatou que ocorrem também baixas entre os militares nesses incidentes, mas ressaltou que "uma brigada de combate não tem as ferramentas para lidar com a população civil em uma zona de guerra", alegando que "disparar morteiros para manter pessoas famintas à distância não é nem profissional nem humano".
"Sei que há combatentes do Hamas entre eles, mas há também pessoas que simplesmente querem receber ajuda. Como país, temos a responsabilidade de assegurar que isso aconteça com segurança", disse ele.
‘Aspecto moral não existe’
Um dos nomes mais citados nas denúncias é o do general de brigada Yehuda Vach, comandante da Divisão 252. No passado, a imprensa israelense já havia noticiado como Vach transformou o Corredor de Netzarim em uma rota letal, sendo também suspeito de ordenar a destruição de um hospital sem autorização. Agora, um oficial da divisão afirma que foi Vach quem ordenou os disparos para dispersar os civis que esperam por caminhões com ajuda humanitária das Nações Unidas.
"Essa é a política de Vach, mas muitos comandantes e soldados a aceitaram sem questionar. Eles [os civis] não deveriam estar ali, então o objetivo é fazê-los sair, mesmo que estejam só em busca de comida."
Segundo apurado pelo Haaretz, a Corregedoria-Geral Militar instruiu o Mecanismo de Investigações do Estado-Maior (órgão das Forças Armadas israelenses responsável por investigar violações das leis da guerra) a revisar os episódios de suspeita de crimes nesses locais. Com o aumento das ocorrências, foi realizada uma reunião no Comando Sul do Exército de Israel, em que foi inicialmente revelado que as tropas haviam começado a dispersar as multidões utilizando projéteis de artilharia.
"Eles falam sobre usar artilharia em um cruzamento cheio de civis como se fosse algo normal", disse ao Haaretz uma fonte militar presente à reunião. "Toda a conversa gira em torno de se é certo ou errado usar artilharia, sem nem mesmo perguntar por que essa arma foi necessária em primeiro lugar. O que preocupa todos é se isso vai prejudicar nossa legitimidade para continuar operando em Gaza. O aspecto moral praticamente não existe. Ninguém para perguntar por que dezenas de civis em busca de comida estão sendo mortos todos os dias".
Altos oficiais do Exército expressaram frustração com o fato de o Comando Sul não ter investigado esses incidentes de maneira adequada e estar ignorando as mortes de civis em Gaza. Segundo fontes militares, o comandante do Comando Sul, major-general Yaniv Asor, normalmente realiza apenas averiguações preliminares, baseando-se nos relatos de comandantes de campo. Ele não tomou medidas disciplinares contra oficiais cujos soldados causaram danos a civis, apesar de violações claras das ordens das Forças Armadas e das leis da guerra.
"Você sabe que não está certo. Sente que não está certo, que os comandantes tomam decisões por conta própria. Mas Gaza é um universo paralelo. Você segue em frente. A verdade é que a maioria nem pensa mais nisso".
Um porta-voz das Forças Armadas disse ao Haaretz que "o Hamas faz tudo em seu poder para impedir o sucesso da distribuição de comida em Gaza e para atrapalhar a ajuda humanitária". Segundo ele, "como parte de sua conduta operacional nas redondezas das principais estradas de acesso aos centros de distribuição, as Forças Armadas de Israel estão conduzindo processos de aprendizado sistemáticos para melhorar sua resposta operacional na área e minimizar, tanto quanto possível, o potencial atrito entre a população e as Forças Armadas de Israel". Por sua vez, o Exército também "rejeitou fortemente a acusação feita na reportagem" do Haaretz, alegando que "as Forças Armadas não instruem os militares a deliberadamente atirarem em civis, incluindo os que se aproximam de centros de distribuição. Para sermos claros, as diretrizes das Forças Armadas proíbem ataques deliberados a civis".
O GHF iniciou seu programa de distribuição de ajuda após Israel ter cortado completamente o envio de mantimentos para Gaza por mais de dois meses, desatando alertas internacionais sobre o risco de fome em massa no território palestino. Autoridades israelenses alegam que o órgão deve substituir o sistema anterior, coordenado pela ONU e que, segundo Tel Aviv, permitia que o Hamas roubasse os itens e lucrasse com as vendas. Agências de ajuda negam essas ocorrências, e Israel não apresentou evidências públicas que sustentem a acusação.
A fundação, liderada por empresários americanos com apoio do governo israelense e, agora, também do governo Trump — que anunciou nesta semana o envio de US$ 30 milhões à operação —, atua de forma independente da ONU e de organizações humanitárias tradicionais, como a UNRWA e a Cruz Vermelha, que rejeitaram o novo sistema. Em carta aberta divulgada na segunda-feira, mais de uma dúzia de órgãos humanitários pediram a suspensão imediata da GHF, descrevendo sua abordagem “privatizada e militarizada” como “uma mudança radical e perigosa em relação às operações de ajuda estabelecidas”.