Todo Terreiro tem uma cozinheira litúrgica. Esta função é de exclusividade das mulheres. Na nação Ketu, tais mulheres são chamadas de Iyábasê. Para o pleno exercício desta função, é necessário o conhecimento a fundo da gastronomia ritualística, pois cada Orixá tem a sua comida específica, e cada ingrediente é utilizado de acordo com seu paladar e ewó – suas proibições. Para quem ainda não sabe, Xangô e Exu gostam de suas comidas com bastante pimenta. Já Oxossi, tem o tabu em comer mel; assim como Oxalá tem pavor de sal e dendê. Esse desconhecimento traz, a meu ver, um grande equívoco no cardápio dos restaurantes de Salvador, onde às sextas-feiras – dia dedicado a Oxalá, é servida a famosa e tão desejada “comida baiana”, recheada de diversos ingredientes diferentes dos tradicionais tanto no prato principal quanto nas guarnições. Além do camarão seco, que traz consigo uma enorme quantidade de sal, esta “comida baiana” é regada no azeite de dendê, quebrando, assim, o paradigma do branco presente – inclusive – nas roupas vestidas nas sextas, por algumas pessoas. No entanto, vale lembrar que este cardápio se tornou uma tradição cultural e popular em toda Bahia, o que resultou na mesma prática em outros Estados. Comer comida de dendê na sexta-feira faz parte de nossa cultura – da porteira pra fora.
Exceto Oxalá, o azeite de dendê é ingrediente primordial na maioria das comidas de Axé. Aqui no Opô Afonjá, além da Iyábasê, existem outras mulheres que são chamadas “mulheres de mão cheia” na cozinha. Até a comida de Oxalá que, para muitos, é sem graça e sem gosto, elas conseguem transformar o esperado sabor da comida sem sal e sem cor, temperada somente com cebola ralada, em verdadeiros sabores indescritíveis. Pelas mãos dessas mulheres, a comida de Oxalá consegue agradar até o paladar mais rústico de quem é acostumado ao sabor forte do dendê. O frango refogado na cebola, por exemplo, perde a acidez deixando um leve paladar agridoce quando se incorpora aos outros alimentos, tais como: inhame e milho branco cozido; quiabo refogado na cebola e acaçá (massa feita com milho branco e cozido até ter ponto de mingau). Nossas “mulheres de mão cheia” fazem com que as comidas consideradas sem graça tenham sabor, por mais delicado que seja.
Existem algumas comidas que não levam dendê, a exemplo do Axóxó – milho cozido com lascas de coco seco e Ixu sisun – inhame assado, ambos comida de Ogun, Orixá que come dendê em outras iguarias. No candomblé, a comida dos Orixás se apresenta nesta explosão de sabores, onde as “comidas vermelhas” – com dendê – e as “comidas brancas” – sem dendê, compõem o tão disputado “caruru de sete meninos”, mais um conhecido exemplo do uso desse ingrediente tão especial. O dendê aparece como item essencial no famoso caruru do mês de setembro, onde os gêmeos católicos São Cosme e São Damião são homenageados. Não muito diferente é o ritual do Olubajé, onde Omolu oferece um rico banquete, contendo um pouco da comida de cada Orixá, agradando a todos os seus convidados.
Aqui no Opô Afonjá em todas as festas, até mesmo nos rituais fúnebres, a comida se faz presente. Comer faz parte da nossa sobrevivência e, para além disso, alimentar as energias se faz necessário para nosso bem-estar. Exemplo disto é o borí – que é o ato de alimentar a nossa cabeça. O Ori – Cabeça é o nosso Orixá intrínseco, e alimentá-lo faz parte dos ritos de iniciação e em todos os momentos em que isto se faz necessário. É como diz o ditado: “cabeça sã, corpo são!”. Este ato da comunhão é tão importante que quando os neófitos vão comer, saúdam a comida batendo paó – palmas, e agradecem por ela apresentando o prato ao mais velho presente dizendo: Unjé un (uma forma de dizer que está se alimentando), quando o mais velho responde: Olorun bá unjé – que Deus abençoe a sua comida. Essa dinâmica é tão mágica, que muitos não conseguem perceber a força que estas palavras têm.
Uma irmã de santo, hoje transformada em Ancestral – chamada Angélica Moreira – criou em 2013 o “Ajeum da Diáspora”, projeto etnogastronômico, aonde ela nos transportava para o outro lado do Atlântico a partir do conceito da cozinha africana agregada a elementos da diáspora. Apesar de ela ter outra função dentro do Terreiro, Angélica cozinhava com amor, tal e qual a Iyábasê e, por isso, cada prato era uma sensação única. A Iyábasê é a “Chef de cozinha”, onde toda a comida ritualística tem que passar pelo seu crivo. Do preparo até a apresentação do prato, tudo tem que estar dentro dos critérios ritualísticos. O tipo do prato e a forma que se arruma a comida têm que seguir o que manda a tradição. Sem a Iyábasê nada disso seria possível.
Dedico este saboroso artigo a Angélica Moreira, Ajoiê de Oxun (in memoriam); a Iyábasê do Opô Afonjá, Mãe Ana Rita de Oyá; a Otun Iyábasê do Ilê Babá Abileré: Egbome Dudu de Omolu e a todas aquelas que põem sua pitada de Axé em nosso alimento de cada dia