Egungun: A morte por debaixo do pano

Ás

Egungun: A morte por debaixo do pano

A interrupção das atividades biológicas faz parte do processo da vida, onde inevitavelmente a vida anda de mãos dadas com a morte. Quando este momento chega, a pessoa iniciada no Candomblé de nação Keto, passa pelo processo de dessacralização do corpo, onde após o sepultamento a cerimônia fúnebre chamada de Axexê, que é última obrigação da pessoa iniciada, onde durante um, três ou sete dias se canta, dança e come em homenagem ao falecido. O processo de passagem independentemente das circunstâncias, pois mesmo perdendo um ente querido com 200 anos vividos, não fomos preparados para conviver com a ausência física. No entanto, para nós do Candomblé a morte não é fim, ainda que o assunto seja bastante complexo e doloroso pra quem passa o processo da perda. Mãe Stella, quando perdeu um irmão de santo querido chamado Moacyr Barreto Nobre, o saudoso Moacyr de Ogun, ela me disse o seguinte: “O problema não é quem morre... É quem fica!” E a partir desta narrativa concluo que; quem fica precisa seguir, compreendendo que teremos de conviver com a saudade até o dia que Deus permitir. 

Contudo, a lembrança de quem partiu precisa ser dinamizada, pois quando essas reminiscências são reproduzidas, a essência de quem não está presente em sua forma concreta, passa estar na forma abstrata, habitando em nossas sensações cognitivas. Toda pessoa que morre teoricamente se torna o Ancestral daquela família, onde a partir da tradição do Candomblé este espírito pode e deve ser reverenciado como energia pura, pois ainda que seja uma força diferente dos Orixás, o objetivo é cultuá-los com a finalidade do êxito em nossos propósitos.   

No início do século XIX, chega ao Brasil, mas precisamente na Ilha de Itaparica - Bahia, um culto paralelo ao dos Orixás denominado Egungun. Estritamente masculino este culto é oriundo da Cidade de Oyó na Nigéria e do antigo reino do Daomé, atual Benim. Somente os iniciados no mistério detêm o poder de invocar os Ancestrais. Esses iniciados se chamam Ojé. Diferente do culto aos Orixás aqui no Brasil, que se distribuiu em diversas famílias, o culto a Egungun é bem mais restrito nesse sentido, onde a grande maioria dos Eguns cultuados aqui veio de África, sendo que os outros pertencem a poucas famílias da diáspora, onde somente os iniciados se transformaram. Em Itaparica a família que se destaca é a dos “Daniel de Paula”, estando no topo da árvore Manoel Antônio Daniel de Paula, onde anos mais tarde se disseminou, e outra família pertencente aos de Paula surgiu. A família “dos Santos”.

Outra família importantíssima onde podemos dizer que é o ponto de partida para o culto aqui no Brasil, é a família Pimentel. O recém chegado e ex-escravo Marcos Theodoro Pimentel, batizado com este nome em terras brasileiras, viveu cativo em Itaparica no início do século XIX. Constituiu família, onde teve como neta Ondina Valéria Pimentel, a quarta Ialorixá do Opô Afonjá. Ondina era filha de José Theodoro Pimentel, que foi o Balé Xangô do Opô Afonjá da época de Mãe Anninha, cargo importantíssimo dentro da corte real. Marcos, “o Velho”, como era mais conhecido, retornou à África junto com seu primogênito, Marcos Cardoso, e consigo trouxeram o assentamento de Babá Olukotun, considerado o primeiro Ancestral do culto ioruba, onde anos mais tarde, seu filho, o “Tio Marcos, funda o Ilê Olukotun, por volta de 1850.   

Não menos importante, outra família remanescente de África é a família Axipá. Oriunda do reino de Ketu e Oyó, na Nigéria, a nobre família Axipá tem no topo desta linhagem Marcelina da Silva, Obá Tossi, que foi a segunda Iyalorixá da dinastia do Ilê Axé Iyá Nassô Oká – Casa Branca do Engenho Velho, a qual substituiu a princesa africana Iyá Nassô. Marcelina era bisavó de Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe Senhora de Oxun, terceira Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Mãe Senhora, mãe biológica de Deócoredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, que era o Alapini, sumo sacerdote deste culto. Em 1980 Mestre Didi fundou em Salvador o Ilê Axipá, casa de adoração aos Ancestrais, e em 2013 faleceu aos 95 anos. 

Mãe Senhora também tinha o cargo de Iyá Egbé (a mãe da sociedade) no Ilê Agboulá em Itaparica, Terreiro datado entre mais ou menos 1964, sendo que anteriormente, em aproximadamente 1940, no antigo Barro Vermelho, um local bem remoto da Ilha, existia um Terreiro fundado pelos irmãos Pedro, Eduardo e Olegário Daniel de Paula, que tinha como patrono um Egun chamado Bakabaká. Este foi o primeiro Egun a nascer no Brasil. Por ser devota de Babá Agboulá, Mãe Senhora comprou um terreno em um local mais acessivo e deu pra ele. Bakabaka então, passou a sua coroa de rei para Agboulá, e até os dias de hoje ele reina soberano, sendo homenageado no dia 8 de setembro. O Ojé fundador do Ilê Agboulá foi Eduardo e seu filho Antônio Daniel de Paula.

Aqui no Brasil a forma de cultuar esses Ancestrais segue a tradição de mais de 200 anos, onde é proibido se revelar o segredo. Ainda existe um olhar negativo quando o assunto é Egun. Assim como Exu é demonizado pelos intransigentes ignorantes, algumas pessoas do próprio Candomblé, por desconhecerem o culto a Egun, acham que eles são algum tipo de energia ruim. De fato, a energia de um ser vivo é diferente com a de quem já morreu, e até mesmo incompatível. No entanto, a filosofia dogmática de ambos se converge, pois a pretensão continua sendo a mesma. Fazer ligação com o sagrado, objetivando o bem estar. Em exemplo básico, cito meu pai Adriano e minha tia Stella, Mãe Stella de Oxossi. Seres que viveram aqui na terra. Criaram-me com muito amor e carinho. Educaram-me e me formaram para vida, mostrando-me os bons caminhos e costumes, sobretudo me protegendo. Então, como é que meu pai e minha tia, pessoas que me amaram por toda uma vida, e, a partir da nossa fé estão num patamar mais próximo a Deus, irão me fazer mal?

O culto a Babá Egun é tão lindo quanto o culto aos Orixás. O que difere, é que os próprios Eguns conduzem todo o ritual. Eles nos repreendem orientando-nos nos caminhos a serem seguidos, sobretudo, emanando suas boas energias, para que assim sigamos nesta vida com a vossa proteção. 

Um mito conta que um homem chamado Alapini, saiu para trabalhar deixando seus dois filhos em casa. O pai orientou-os, que não comessem um determinado tipo de raiz, pois era muito venenoso. Mas a desobediência fez com que os garotos comessem tal raiz, e ao retornar pra casa, Alapini encontra seus filhos caídos no chão e sem vida. Foi um desespero total! Após o Axexê, Alapini consultou o oráculo, pois queria encontrar algum jeito de rever seus filhos, nem que fosse por uma única vez. Então Alapini orientado pelo Babalawô, seguiu os preceitos determinados pelo oráculo, onde em uma árvore sagrada fez todas as obrigações, até a aparição de seus filhos. Como a aparência física dos garotos poderia assustar a comunidade devido à transfiguração de seus corpos, Alapini confeccionou roupas bem coloridas, com bastantes búzios e miçangas, para que assim ele pudesse mostrar seus filhos a todo egbé.

Até hoje nessas aparições, os Eguns costumam cantar uma cantiga que traduz o seguinte: “De acordo com os ritos, tiras de panos é o que se ver. O que há por baixo da roupa é um mistério, pois a morte ninguém sabe o que é!” Os Eguns se comunicam com uma voz inumana e falam através de parábolas, onde dançam ostentando suas roupas coloridas com búzios, espelhos e miçangas. Aqui no Brasil, os Eguns habitualmente carregam as insígnias que representam o Orixá da pessoa falecida, e os seus nomes trazem consigo o Axé (força) e significados que muitas vezes vão de acordo com o nascimento daquela vida após a morte. 

O culto a Egun só fortalece a nossa Ancestralidade, transformando aquele ente querido que não está mais presente em sua forma física, mas que as memórias os torna vivo em sua essência. Minimizando a dor da perda e nos preparando para o nosso momento que é inevitável. Existe uma canção que é cantada somente para os Ojés, mas que se popularizou aos adeptos do Candomblé onde indistintamente se canta para qualquer iniciado da religião, onde sua tradução também foi adaptada: “Os iniciados no mistério não morrem. Os iniciados no mistério, não desaparecem. Os iniciados no mistério vão para o local onde a vida se renova.” Entretanto no livro AGADÁ – Dinâmica da Civilização Afro-Brasileira – 1995, de Marco Aurélio Luz, Ojú Obá do Opô Afonjá e Elebogi do Ilê Axipá, diz o seguinte: “Aqueles que fazem o mistério nunca morrem. Os iniciados no mistério nunca se corrompem. Os iniciados vão somente para Itunlá, lugar da vida ilimitada e verdadeira. Itunlá, casa do mistério de onde os Eguns também são invocados.”

Dedico este artigo aos irmãos Ojés que aqui ainda estão, e, em especial, aqueles que já se transformaram na energia mais linda que os olhos podem ver.

Gbogbo Mariwô delê igbô!
Iku ô!!!

Por Adriano Azevedo, que além de Ministro de Xangô, é iniciado nos mistérios dos Eguns.
 

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