As minhas lembranças de hoje são pequenos fragmentos de um período no qual ainda era uma criança de aproximadamente cinco anos de idade. No entanto, o sentimento que tenho é de muita saudade. Até hoje não sei porque eu tinha tanta admiração por este Inesquecível. Tio Júlio é o meu Grande Inesquecível de hoje. Grande porque ele era um homem de quase dois metros de altura. Sabe aqueles negrões jogadores de basquetebol? Pois bem: esse era Tio Júlio!
As lembranças que tenho dele começam com a imagem de um homenzarrão. Tio Júlio era um fidedigno filho de Oxalá. Sempre vestido com roupas bem brancas: calça, camisa de manga comprida e boina; costumava caminhar pela roça com seu charuto na mão. Morava ao lado do barracão de festas com sua esposa, tia Celina de Nanã. Egbome Tutuca – já citada aqui algumas vezes, é a minha referência em algumas informações. Tutuca viu muita coisa aqui na roça. Ela me disse que era ele quem cuidava do Ilê Ibó – Casa de adoração aos Ancestrais. Tutuca, também com vaga lembrança, arrisca em dizer que ele era Ogan do Oxalá da finada Patu. Essa eu não conheci. Tia Patu foi a Ojubonã – Mãe cuidadora – de Tutuca.
Diferente de Nezinho, Inesquecível lembrado em minhas memórias – veja aqui: Nezinho: o chamador de Orixá - Bahia | Farol da Bahia, que tinha medo de Egun, Tio Júlio tinha paixão pelo culto. Chegou a ser Amuixan, espécie de pré-sacerdote, assim como Nezinho. No entanto, era frustrado por não ter se tornado Ojé – sacerdote do culto aos Eguns, pois a idade avançada não o permitia tal façanha. Lembro-me de uma passagem, onde uma comitiva de africanos visitava a roça. Tio Júlio se misturava com aqueles africanos como se fizesse parte do grupo. Eu só tinha cinco anos de idade, mas me lembro nitidamente deste momento. Me sentia como não estivesse aqui na roça. Parecia que estava em outro lugar. Hoje consigo perceber que o lugar que achava que estava era a África.
Tutuca me contou um episódio muito engraçado no qual Lucas de Omolu, aquele que me fotografou com os testículos do boi nas mãos – citado em Nivaldo, o Ninja: aquele que regressou pra casa - Artigos | Farol da Bahia e bebeu água no copo de dentadura – descrito no artigo Tia Noêmia: o guerreiro veio novamente - Bahia | Farol da Bahia, olhou para os pés de Tio Júlio e perguntou: “Tio Júlio! O senhor calça 70 é?”: foi tanta risada na hora, conta Tutuca saudosa. Eu acho que minha admiração por Tio Júlio era algo Ancestral, tudo me impressionava nele: sobretudo sua altura, eu olhava pra ele como se tivesse olhando pro céu. Quando ele me via, sempre me tratava com muito carinho. Fazia carinho em minha cabeça e às vezes quando vinha da quitanda de seu Láu, trazia pra mim amendoim com aquelas coberturas de chocolate e cobertura colorida.
Tio Júlio partiu para o Orun de forma inesperada. Lembro-me nitidamente do desespero e da correria do povo. Eu não queria acreditar, mas o Gigante partia pra nunca mais voltar.
Salve Tio Júlio, o Gigante.