A linguagem do crime: apropriação de símbolos por facções causam mortes e terror na Bahia
Segundo Antonio Soares, pesquisador de segurança pública, a chegada de facções de outros estados contribuíram para a “codificação dos faccionados”
Foto: Unsplash
Em um passado não muito distante, notícias sobre pessoas não envolvidas no tráfico de drogas que morriam devido ao crime organizado estavam quase sempre associadas a assaltos, arrastões ou balas perdidas. Agora, uma foto descontraída, um corte de cabelo e até mesmo uma estampa de camisa tem resultado na morte de jovens baianos. Tratam-se dos símbolos associados a facções criminosas: números de dedos suspensos em imagens, riscos no cabelo e sobrancelha, expressões, camisas de seleções de futebol e até mesmo o desenho do Mickey.
No último dia 6, na cidade de Feira de Santana, um jovem de 20 anos identificado como Marcos Vinícius Alves Gonçalves foi executado após publicar uma foto fazendo um sinal associado a uma facção que atua na cidade. Informações dão conta de que o rapaz, que não tinha passagem pela polícia, pode ter sido confundido com um membro de facção devido à postagem, que foi conferida pelos autores dos disparos no próprio celular da vítima.
Em Camaçari, em outubro do ano passado, os irmãos Gustavo Natividade, 15, e Daniel Natividade dos Santos, 21, percussionistas do bloco afro Malê Debalê, também foram mortos após publicarem fotos em que faziam sinais associados a organizações criminosas com as mãos. Ao G1, Alex Campos, líder comunitário e organizador do passeio do qual o grupo participava, disse que só foram alvos do ataque a tiros os que fizeram os gestos.
Entre a população, principalmente das localidades em que os crimes acontecem, o clima é de terror. Victória Barbosa, 24, moradora do bairro feirense Asa Branca, onde Marcos Vinicius foi morto a tiros, tem orientado amigos e familiares a apagarem fotos que possam ter qualquer associação com o crime. “Hoje, tudo é motivo para matar e todo mundo está com medo. E não são só símbolos em fotos, mas até mesmo algumas palavras que costumamos usar para cumprimentar outra pessoa, tem que evitar, porque eles utilizam para se identificarem. Se tiver em um bairro diferente, é pior”, disse Victoria.
Virgínia Souza (nome fictício), moradora de Itapuã, disse à reportagem que, embora considere o bairro em que vive “tranquilo”, a crescente de notícias sobre o tema tem gerado medo. “Tantos casos relacionados a esses símbolos me deixaram preocupada e tenho evitado fazê-los. Seja em fotos, vídeos ou no cotidiano, tenho me policiado muito e também peço para as pessoas próximas não fazerem. Tenho medo de dar um vacilo e acabar virando notícia na TV. Claro, alguns amigos levam na brincadeira, mas outros também estão com medo de acontecer algo”, afirmou.
Reprodução/ Observatório de Segurança Pública
Identidade criminal
De acordo com o sociólogo Antonio Mateus Soares, pesquisador de Segurança Pública, a economia do crime protagonizado pelo tráfico de drogas se organiza através de facções, que criam as próprias doutrinas e representações: os símbolos, signos, gestos e comportamentos, que fazem parte de um conjunto de elementos da identidade criminal. “São códigos de reconhecimento que acionam dispositivos de pertencimento a determinados grupos criminosos é uma forma de reconhecimento mútuo, filiação e organização da facção”, disse.
Ainda segundo Soares, a chegada de facções de outros estados contribuíram para o que chamou de “codificação dos faccionados”. “A territorialização do crime organizado e a disputa entre as facções contribuem demasiadamente para a codificação dos faccionados, através de tatuagens, cortes de cabelos e estilos de roupas, ampliando o conflito e a sensação de medo e terror na sociedade”, destacou Antonio.
Reprodução/Observatório de Segurança Pública
Turismo
O clima de tensão também chegou nos pontos turísticos de Salvador. Mesmo sem conhecer ou acompanhar a realidade do município, quem vem de fora também sente medo de fazer algum sinal que pode ser interpretado como ligação ou apoio a alguma facção criminosa. O medo tem sido disseminado, principalmente, por meio das redes sociais.
No dia 12 de janeiro, a infuenciadora Sophia Cit, irmã da também blogueira Manu Cit, expressou o seu medo ao fazer, sem querer, sinais associados a organizações criminosas atuantes na cidade, durante as filmagens da corrida Guudrun. "Na corrida havia vários fotógrafos. Foi a primeira corrida da minha irmã, e aconteceu em Salvador. Aqui tem essa questão das facções, que usam certos símbolos, e você não pode fazê-los ao tirar foto. Um turista já morreu por isso, é bem perigoso. A cada fotógrafo que passava, eu fazia algo com a mão. Fiz o hang loose e logo depois percebi que não podia. Passei o resto da corrida inteira com medo”, relatou Sophia no Instagram.
Um outro influencer e turista que visitou Salvador no início de janeiro gerou grande repercussão nas redes sociais após postar um vídeo mostrando edições criativas em suas fotos tiradas em pontos turísticos da cidade. No vídeo, ele "mascara" os sinais feitos com a mão inserindo objetos e animais. "Brasil tá um perigo, melhor se prevenir", disse o influencer na legenda.
Na avaliação do sociólogo e pesquisador de segurança pública Antonio Soares, a sensação de medo e terror criada no imaginário social em relação à criminalidade e às novas dinâmicas das facções não devem ser desprezadas. "Já temos exemplos noticiados de diversos homicídios gerados pela utilização de determinadas simbologias. É necessário que o Estado além de qualificar a segurança pública para combater o tráfico de drogas, faça campanhas de orientação para população evitar o uso de simbologias, que sejam associadas as facções", disse.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do estado da Bahia (SSP/BA) ressaltou que as Forças Policiais não permitirão que organizações criminosas ditem qualquer tipo de regra. "Destaca ainda que ações de inteligência e repressão qualificada foram intensificadas contra facções, resultando na localização de 94 líderes de grupos criminosos. Trinta foram encontrados em outros estados. A SSP reitera o combate incansável às facções e, por fim, lembra que informações sobre o crime organizado podem ser repassadas para as Forças da Segurança, com total sigilo, através do telefone 181 (Disque Denúncia)", disse a pasta.