• Home/
  • Notícias/
  • Justiça/
  • 'Ainda estamos aqui': famílias de vítimas da Ditadura Militar conquistam direito de retificar certidões de óbito

'Ainda estamos aqui': famílias de vítimas da Ditadura Militar conquistam direito de retificar certidões de óbito

Farol da Bahia conversou com familiares de mortos pelo regime que lutaram durante décadas para ter os documentos; filme com história de desaparecido político foi indicado ao Oscar

Por Bélit Loiane
Ás

Atualizado
'Ainda estamos aqui': famílias de vítimas da Ditadura Militar conquistam direito de retificar certidões de óbito

Foto: Reprodução | Arquivo Pessoal

“É uma sensação esquisita essa de ficar aliviada com um atestado de óbito". A frase dita por Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, morto entre os dias 20 e 23 de janeiro de 1971 pela Ditadura Militar Brasileira, foi resgatada pelo filme ‘Ainda Estou Aqui’, indicado ao Oscar 2025 nesta quinta-feira (23), e sintetiza o sentimento de mais de 400 famílias de desaparecidos vítimas do regime.

A luta pelo papel que apresenta um desfecho - ainda que sem diversas respostas - se esbarrou durante décadas em mais um grande problema: a causa da morte que constava nos documentos era descrita como desconhecida. Agora, 54 anos após a morte de Rubens Paiva, 432 famílias terão o direito ao reconhecimento dos assassinatos. 

Causa da morte: "Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964", é o texto que vai constar nas certidões dos mortos pela ditadura, segundo determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de dezembro, que acata o relatório final apresentado pelo Comissão Nacional da Verdade, em 2014.


Dinaelza Santana Coqueiro
Arquivo Pessoal

Rubens Paiva desapareceu em 1971, mas somente em 1996 Eunice conseguiu que o Estado reconhecesse a morte dele. O tempo foi o mesmo enfrentado por Diva Santana na busca pela irmã Dinaelza Santana Coqueiro, morta aos 20 anos na Guerrilha do Araguaia. Para a baiana, a correção no documento realiza um sonho vivido há anos, mas escancara o descaso do Brasil com a própria história. 

“Eu tenho 80 anos e há 50 eu luto. Então essa decisão do CNJ de um lado satisfaz na questão do resgate da história, mas do outro é uma vergonha 50 anos para conseguir um atestado de óbito dizendo a causa da morte”, declarou Diva ao Farol da Bahia


Certidão de óbito de Dinaelza Santana Coqueiro, sem causa da morte
Arquivo Pessoal

As primeiras certidões de óbito que reconhecem as vidas ceifadas pelo regime foram expedidas a partir da Lei 9.140, em 1995. Membra da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, criada no mesmo ano, Diva lembra que, mesmo com a promulgação, precisou que o Ministério da Justiça ordenasse que o documento fosse expedido. Foi ela mesma quem escreveu as informações do atestado de morte da irmã.

“Fomos ao fórum e eles disseram para a gente que não tinham conhecimento desse procedimento. Comunicamos então à Comissão e aí o ministro da Justiça entrou em contato com o Tribunal de Justiça e indicou o cartório para irmos. Fomos correndo, mas só tinha uma funcionária. Só saímos de lá 22 horas e isso porque eu fui para uma das maquinas datilografar”. 

Diva aguarda a retificação com ansiedade e define o movimento como um resgate da memória, verdade e justiça.

“Há a importância sobretudo no cumprimento normal das decisões da vida do ser humano, da cultura do nosso povo, nosso jeito de morrer e de viver tem uma certidão. E nós ainda estamos aqui lutando pelos esclarecimentos das circunstâncias das mortes”.  

“Grande vitória nossa”


Certidão de óbito de João Haas, já retificada

Arquivo Pessoal

Em 2019, a comissão conseguiu que as primeiras certidões corrigidas fossem emitidas. No entanto, o trabalho foi interrompido devido ao desmonte do órgão no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Naquele ano, 10 famílias conquistaram a alteração no documento, entre elas a de Gildo Macedo Lacerda e João Carlos Haas, ambos desaparecidos políticos. 

Ao Farol da Bahia, a filha de Gildo, Tessa Moura Lacerda contou que durante anos enfrentou dificuldades por não ter o nome do pai nos documentos. Gildo foi assassinado em 1973, quando a mãe de Tessa, Mariluce Moura, ainda estava grávida. Por não ter o atestado de óbito para apresentar, ela não conseguia o registro do pai.

“Na minha infância, a ausência da certidão de óbito dele significou uma série de coisas. Eu me questionava: ‘será que ele morreu mesmo ou conseguiu fugir?’”, relembrou. Tessa se recusou a fazer o RG sem o nome de Gildo e foi somente aos 18 anos que conseguiu o documento da maneira completa.

“Eu precisava da carteira de identidade para fazer o vestibular, mas eu não queria fazer sem o nome do meu pai. Minha mãe precisou mover um processo longo de reconhecimento de paternidade. Em tese, ela estava processando os meus avós para que eu fosse reconhecida, tudo isso com o consentimento deles, é claro”.


Gildo Macedo Lacerda, desaparecido político
Reprodução

Já a certidão de óbito só veio quatro anos depois, quando Tessa já tinha completado 21. Ainda assim, a causa da morte presente na documentação deixou um vazio que só foi preenchido em uma manhã chuvosa de 2019.

“Minha mãe e eu fomos com os documentos até o cartório e tentamos fazer passar isso. Eu lembro que era uma manhã com garoa em São Paulo, fomos na aventura e o cartório aceitou. Parece algo banal, sabe? Mas é um gesto que super importante, uma grande vitória nossa, que por anos, décadas não tínhamos sequer um documento oficial”.


João Carlos Haas, desaparecido político
Reprodução

Das famílias contempladas naquele ano, a de João Carlos Haas, morto na Guerrilha do Araguaia como Dinaelza, foi a última a obter o documento. A irmã dele, Sônia Haas, recebeu a certidão pela caixa de correio e marcou um ponto chave na luta que se estende desde 1972. A mãe de João já havia falecido, mas pôde testemunhar a primeira certidão. 

“A primeira certidão foi um impacto muito forte. Eu fui com minha mãe, que ainda estava viva, e ela não recebeu o corpo do filho, não pôde fazer o ritual de despedida. Temos um lugarzinho comprado para quando encontrássemos ele e ela é obrigada a ir a um cartório pedir um documento que comprovasse a morte. Hoje eu tenho para mostrar para a minha família, sobrinhos, novas gerações que ele não está enterrado lá porque foi morto pelo Estado”, declarou Sônia.

Emissões em fevereiro

Segundo o CNJ, as famílias não precisarão buscar os cartórios para obter os documentos. O trabalho será feito pelas corregedorias-gerais de cada estado. 

As entregas vão acontecer em fevereiro, após os cartórios encaminharem os documentos atualizados ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Segundo os dados da pasta, serão 202 casos de retificação e 232 novos registros de óbito a serem produzidos. 

LEIA TAMBÉM:

• Fernanda Torres e 'Ainda estou aqui' são indicados ao Oscar como Melhor Atriz e Melhor Filme Internacional
• Fernanda Torres vence o Globo de Ouro de melhor atriz e faz história
• 'Ainda Estou Aqui' recebe indicação ao BAFTA de melhor filme internacional
• Militares acusados pelo assassinato de Rubens Paiva recebem mensalmente mais de R$ 140 mil de salários e pensões
• OAB pede para que cartórios retifiquem certidão de óbito de vítimas da ditadura
• 
Jerônimo Rodrigues promete levar 'Ainda Estou Aqui' para escolas estaduais da Bahia

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie:[email protected]

Faça seu comentário