Áudios: Alienação parental - entenda como a lei pode afetar as mulheres
Processo de revogação da lei tramita no Congresso
Foto: Agência Brasil
“Não estou louca, não estou delirando e não sou perigosa para o meu filho”. Esse é o relato de uma das centenas de mães que sofrem com os efeitos da Lei de Alienação Parental, que há mais de 10 anos entrou em vigor no Brasil. Atualmente, mulheres sobreviventes de violência doméstica e mães que perderam a guarda dos filhos e filhas ao denunciar maus-tratos, negligências ou violências sexuais cometidas pelos pais se juntaram em um grande movimento que pede o fim da lei. De acordo com essas mulheres, a lei tem sido usada em muitos casos nos tribunais brasileiros para silenciar mulheres e beneficiar homens.
A alienação parental é o processo e o resultado da manipulação psicológica sobre uma criança para que ela sinta medo, desrespeito ou hostilidade injustificados em relação ao pai, mãe ou a outros membros da família. Esses casos são observados em situações de separação ou divórcio, por exemplo. No Brasil, a demanda para a elaboração da Lei de Alienação Parental surgiu das associações de pais separados que buscavam reivindicar seus direitos de convívio com os filhos ou filhas. A alienação parental virou lei no Brasil em 2010. Na época, a justificativa usada pela relatora, a deputada federal Maria do Rosário, era a de que a legislação protegeria crianças que convivem com pais separados. Contudo, em 2017, o ex-senador Magno Malta instaurou a CPI dos Maus-Tratos que levantou questões acerca dos impactos da aplicação da lei e propôs a revogação. Porém, anos se passaram e o processo de revogação da lei continua tramitando no Congresso. Recentemente, a deputada Marília Ferraz defendeu publicamente, em sessão, a “necessidade urgente de revogação da Lei de Alienação Parental”.
“Desde o início do meu mandato me chama a atenção a quantidade de crianças que estão sendo tiradas de suas mães e entregue a seus abusadores, devido a péssima aplicação da lei no ordenamento jurídico brasileiro. É importante dizer que a partir do momento que a gente quer a revogação da Lei de Alienação Parental ninguém está dizendo que não existe o uso das crianças e adolescentes em conflitos parentais, claro que existe. Mas isso não tem que ser tratado no contexto jurídico, tem que haver um trabalho do estado nacional brasileiro e do poder público para que essas famílias sejam cuidadas. Tem que ser tratado no aspecto e no contexto psicossocial e não simplesmente priorizar a punição e a penalização de um dos genitores, na maioria das vezes, mulheres”, disse.
Segundo a deputada, na maioria dos casos, as mães são acusadas de alienação e têm sido punidas por essa lei. “A punição não deve ser uma prioridade. A prioridade tem que ser o cuidado das nossas crianças e nós já temos instrumentos para isso, através do Estatuto da Criança e do Adolescente”, afirmou Marília Ferraz.
Em uma sessão na Câmara dos Deputados, a representante da ONG Vozes de Anjos, Juliana Ahn, afirmou que várias famílias estão sofrendo as consequências da lei de Alienação Parental, que foi relacionada ao abuso sexual de menores. É também o que explicou Hélia Braga, em entrevista ao Farol da Bahia. Ela, que é mãe e foi acusada de alienação parental após descobrir que o pai das filhas dela estava envolvido em esquemas de corrupção, relatou que esteve em contato com muitas mães que foram acusadas de alienação parental depois que denunciaram abuso sexual. Segundo ela, na maioria dos casos, o pai acusa a mãe de alienação parental por conta da proteção ao abuso. Ou seja, diante da denúncia de abuso sexual. “Quando as mães entram com a denúncia de estupro de vulneráveis na criminal, os pais entram com a denúncia de alienação parental nas Varas de Familia. Eles conseguem acelerar o trâmite da Vara de Família que declara alienação parental e, depois desse processo, eles pegam a declaração de alienação parental da Vara de Família e levam para Vara Criminal e assim os processos são arquivados porque, segundo a justiça, não é abuso e sim alienação parental”, disse.
“Isso está acontecendo no Brasil de uma forma absurda. A lei, inclusive, determina a inversão da guarda dos filhos como aconteceu comigo. Então, imagine que tem várias crianças que sofreram abusos por parte dos pais, dos avós ou por parte dos tios, por exemplo, e foram entregues ao algoz. A questão não é só tirar a guarda das mães. Além de tirar, eles consideram as mães perigosas na vida das crianças e a afastam. Conheço uma mãe que está há mais de cinco anos sem conseguir nem contato telefônico com o filho de três anos que foi tirado dela. É uma situação absurda, não dá para entender como o mundo está atento a isso e aqui a rede de pedofilia passeia tranquila. No meu caso, não houve abuso. Mas meu ex-companheiro usou a lei para me qualificar como louca e desequilibrada porque se eu sou isso o que eu denuncio é mentira”, explicou.
Ainda segundo Hélia Braga, outros países, como a Espanha, estão se manifestando contra o uso dessa dita Síndrome de Alienação Parental (SAP). Esse conceito foi criado pelo médico clinico norte-americano Richard Gardner, em 1985. Ele é conhecido pelo trabalho como perito judicial em mais de 400 casos de guarda de crianças, defendendo pais, professores e membros de congregações religiosas de acusações de abusos sexuais e de pedofilia.
Para Richard, um genitor poderia, como forma vingativa, desconstruir a imagem do outro para a criança, inclusive criando falsas memórias de abuso sexual. Ele defende que, quando não identificada e devidamente tratada, a Síndrome de Alienação Parental poderia trazer graves consequências psíquicas e comportamentais para a criança. A alienação parental, no entanto, nunca foi reconhecida como síndrome ou doença. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o termo alienação parental como “um problema de relacionamento entre criança e cuidador”, e não como um distúrbio.
Para os defensores da revogação da Lei de Alienação Parental no Brasil, os questionamentos começam desde a origem. Isso porque, segundo especialistas, a Síndrome de Alienação Parental foi pensada com base nas observações pessoais de Gardner, sem método científico, e somente em seu trabalho como testemunha especializada, em nome de pais acusados de molestar seus filhos. “Richard Gardner foi indiciado por pedofilia pelo FBI e depois disso se suicidou. Além disso, ele vendia laudos para proteger pais pedófilos alegando alienação parental das mães. Ele também escreveu um livro onde fala horrores a respeito da relação das mães, diz que as mães alienam os filhos contra os pais”, disse Hélia Braga.
“Para proteger os pais pedófilos ele descreveu essa síndrome. Então, ele pegou os sinais e sintomas que uma criança abusada apresenta, principalmente os psicológicos, e descreveu como sinais e sintomas da Síndrome de Alienação Parental. Foi o jeito que ele encontrou para defender os pais pedófilos nas criminais americanas. Então, todas as vezes que uma mãe descobria o abuso nos Estados Unidos e denunciavam eles entravam com alegação de que era a síndrome de alienação. Ou seja, a criança apresentava sinais de abuso sexual e isso era revertido em sindrome de alienação aprental. Para disseminar essa síndrome, que ele inventou, ele mesmo montou a própria editora dele para editar o livro com a ajuda de uma rede de pedofilia americana”, completou. Ainda segundo ela, os princípios da síndrome foram difundidos no Brasil através do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) que é uma associação “gardenista".
Casos de abuso sexual
Os dados mais recentes do Disque 100 do ano passado mostram que foram registradas um total de 17.093 denúncias de violência sexual contra menores de idade. A maior parte delas é de abuso sexual (13.418 casos), mas há denúncias também de exploração sexual (3.675). Só nos primeiros meses de 2019, por exemplo, o governo federal registrou 4,7 mil novas denúncias. Os números mostram que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas. Em mais de 70% dos registros, a violência foi cometida na casa do abusador ou da vítima.
O Farol da Bahia teve acesso a dois casos de abuso sexual contra crianças. Nós áudios abaixo, é possível ouvir crianças relatando o abuso cometido pelo pai. Em um dos casos, por exemplo, a criança relata a mãe: “papai colocou o pintinho na minha ‘pepeca’”.
O Farol da Bahia obteve acesso a dois relatos, confira:
O que dizem os pais?
O Farol da Bahia conversou com dois pais, que preferem não ser identificados, que são contra a revogação da Lei de Alienação Parental no Brasil. Ambos alegam que com a abolição da lei os homens serão vistos como pedófilos ou ainda serão condenados injustamente pela mãe de seus filhos.
O primeiro pai defendeu que a revogação da lei não pode acontecer. “Isso é um erro, não se revoga totalmente uma lei. O que estão alegando é que os homens, ou seja os pais, estão usando defesa em cima da alienação parental para qualquer tipo entrever com a as mães. Além disso, estão alegando que tem pais que utilizam a alienação parental para se defender até de denúncia de agressão ou abuso. Na verdade, eu acho que há muita prática de alienação parental, principalmente, porque ela pode ser praticada pelo pai ou pela mãe. Então essa lei não beneficia apenas um gênero. Quando se faz uma lei é, primeiramente, pensado no bem comum. A lei de alienação parental ela serve para regular os abusos cometidos tanto pelo pai quanto pela mãe, só que na maioria dos casos a guarda fica com a mãe por uma questão natural”, disse.
“Então excluir a lei, alegando que estão usando ela como artifício de defesa em caso de acusações e para prejudicar as mães, é uma ação muito equivocada. Essa lei tem que continuar porque ela equilibra as relações, quem estiver errado tem que responder na justiça pelos abusos. A lei talvez precise de uma requalificação legal, nos sentido de tornar a alienação parental mais clara. Acho ainda que não devem excluir nenhum dos cônjuges da criação das crianças, e sim criar um programa de conciliação para que o convívio com o pai continue. Não tem que excluir a lei, tem que fazer uma readequação”, completou.
Ele disse ainda que quando o filho dele nasceu ele só conseguiu ter contato com as crianças após dois anos e seis meses. “Minha ex-companheira entrou na justiça, teve toda a questão da pensão alimentícia, fiz teste de DNA. Teve a pensão e não teve a convivência. A criança nasceu em 2015 e eu só pude vê-la em 2017. Só nesse episódio já houve uma alienação parental" , contou.
Já o segundo pai disse que a revogação da lei só vai beneficiar “as mulheres criminosas”. “A revogação só vai beneficiar essas mães que praticam a alienação parental, que só prejudica o pai e as crianças. Eu mesmo estou há mais de um ano sem ter contato nenhum com os meus filhos. A justiça é feminista. Minha ex-companheira, por exemplo, deu uma queixa na delegacia da mulher e eu tô respondendo um processo de distanciamento sem prova nenhuma, só baseado na palavra dela. E respondo também uma ação criminal, porque ela falou que eu invadi a casa dela. Isso tudo só baseado no que ela disse. Então, talvez eu só tenha acesso a meus filhos depois que eles atingirem a maioridade”, disse.
O que caracteriza alienação parental?
De acordo com a legislação brasileira, trata-se de uma "interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida [...] para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este". Ou seja: ações que visam "estragar" a relação da criança com o pai ou com a mãe. Ela pode ser praticada tanto por um dos pais quanto por avós ou pessoas que tenham o menor de idade sob sua autoridade.
A Lei 12.318/2010 exemplifica ações que podem ser consideradas como alienação parental, mas deixa claro que podem ser acrescentados à lista "atos declarados pelo juiz ou constatados por perícia", sejam eles praticados diretamente ou com auxílio de terceiros.
Os exemplos que constam na lei são:
-Realizar uma campanha de desqualificação sobre a conduta do outro no seu exercício de pai ou mãe;
-Dificultar o exercício da autoridade parental;
-Dificultar o contato da criança ou adolescente com o genitor;
-Omitir do pai ou da mãe informações pessoais relevantes sobre a criança, tais como escolares, médicas e alterações de endereço;
-Apresentar falsa denúncia contra o genitor ou seus familiares a fim de dificultar a convivência entre eles;
-Mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando dificultar a convivência com o pai, a mãe ou seus familiares.
O que acontece após a acusação?
Segundo o Art. 4º, após o pai ou a mãe declarar indícios de alienação parental, "o processo terá tramitação prioritária, e o juiz determinará, com urgência, ouvido o Ministério Público, as medidas provisórias necessárias para preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente, inclusive para assegurar sua convivência com genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso".
A lei diz ainda que será assegurado ao filho a garantia de visitação, com exceção dos casos em que exista risco à integridade física ou psicológica, atestado por profissional designado para acompanhamento das visitas. Como punição, podem ser aplicadas multas ao alienador ou a guarda da criança pode ser invertida. Nos casos mais graves, ocorre a suspensão do poder familiar, uma restrição no exercício da função como pai ou mãe, que pode ser revertida posteriormente.