Brasil articula frente latino-americana para COP30 e quer driblar divergências com Milei
A ideia nasceu da percepção de que a América Latina vive uma escalada de divisões internas, que começaram a gerar enfrentamentos diretos no alto nível da diplomacia

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
JOÃO GABRIEL*, NOVA YORK, EUA - Brasil e México lideram a articulação para construir uma frente de países latino-americanos e caribenhos e, com ela, tentar driblar temas de discórdia dentro da região nas negociações climáticas --como a resistência da Argentina de Javier Milei em tratar de questões de gênero, ou da Venezuela no debate sobre petróleo.
O objetivo, segundo três pessoas ouvidas pela Folha sob reserva, é criar consensos e acordos para avançar com pautas na COP30, a conferência de clima da ONU (Organização das Nações Unidas) que neste ano acontece pela primeira vez na América Latina -em Belém, capital do Pará.
A ideia nasceu da percepção de que a América Latina vive uma escalada de divisões internas, que começaram a gerar enfrentamentos diretos no alto nível da diplomacia. Por exemplo, as trocas de farpas públicas entre dois antes grandes aliados, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o venezuelano Nicolás Maduro.
Ou então o momento, em 2024, quando a polícia do Equador invadiu a embaixada do México no país para prender o ex-vice presidente, Jorge Glas.
Ao contrário da África, que tem a AGN (Grupo de Negociadores Africanos, em inglês), a América Latina não tem um grupo regional e está dividida em diversos coletivos menores.
De maneira geral, o sintoma identificado é que há um déficit de confiança entre os países da região.
A ideia da frente, segundo os diplomatas ouvidos pela reportagem, não é que ela seja formalmente uma associação, mas que funcione como um fórum para que as delegações latino-americanas e caribenhas possam somar esforços por pautas em comum -por exemplo, mais recursos climáticos.
"De alguma maneira, este processo de diálogo pretende dar a oportunidade aos países que conheçam suas respectivas posições e, na medida do possível, se aliem, tenham a confiança e o respaldo para atuar ativamente em seus respectivos grupos de negociação", diz à Folha Patrícia Espinosa, atual enviada especial da COP30 para a América Latina e diplomata mexicana.
"Dessa forma, quando um país que pertence a um determinado grupo de negociação e tenha uma posição, tenha a segurança que há, por exemplo, outros 30 países que estão de acordo com ele", completa.
Ela, a embaixadora brasileira e diretora de clima do Itamaraty, Liliam Chagas, e a CEO da COP30, Ana Toni, são as principais articuladoras da iniciativa.
Após alguns meses de diálogo entre delegações, a frente começou a atuar no México, durante encontro de países latino-americanos e caribenhos, em agosto, que resultou em uma declaração conjunta de apoio à presidência brasileira da COP30.
O documento, por um lado, descreve quais são os principais pontos de convergência entre as nações, mas, por outro, já deixa claro quais divergências devem ser mais difíceis de transpor.
A carta, assinada na Cidade do México, tem duas notas de rodapé. Uma delas, da Argentina, é contrária a tratar de questões de gênero.
Sob o governo de Javier Milei, o país passou a travar essa temática, tanto nas negociações climáticas quanto nas econômicas. Inclusive, já atuou desta forma durante as reuniões preparatórias para a COP30 que aconteceram em Bonn, na Alemanha.
Já o segundo asterisco do texto veio da Venezuela, que resiste em tratar da redução de uso de petróleo -o país tem a maior reserva do combustível em todo o mundo.
Negociadores também citam a Bolívia como, entre os países latino-americanos, um dos mais descrentes com a ideia da frente e pouco ativo nas conversas que aconteceram até agora.
O objetivo é que a frente aborde esses entraves. Sob reserva, um negociador dá o seguinte exemplo: Brasil e Venezuela não estão em um bom momento diplomático e, dificilmente, bilateralmente, chegariam a qualquer aliança para atuar na COP30.
Por meio da frente, países de boa relação com ambos -como Cuba, ainda segundo a hipótese mencionada- podem atuar para que, mesmo sem um consenso entre as nações, elas atuem juntas em defesa de temas comuns.
Este diplomata acredita, em outro exemplo, que se houver um acordo entre dezenas de países para apoiar temas de interesse da Argentina, a diplomacia de Milei pode ao menos ceder e não mais travar as negociações sobre gênero -mesmo que não mude de posição.
A declaração seria uma demonstração disso: a divergência gerou uma nota de rodapé, mas não impediu que o documento fosse elaborado e assinado.
A ideia de trazer os países do Caribe para dentro da frente também tem a ver com essa estratégia. Por um lado, são nações muitas vezes com pouca força diplomática. Por outro, agregando um número maior ao grupo, a pressão contra eventuais divergências aumenta.
Pelo documento, a frente deve manter posições conjuntas em temas como o financiamento climático, sobretudo para que os países mais ricos aumentem sua ambição em benefício dos em desenvolvimento, e a defesa de que a transição energética seja igualitária, também atingindo as populações mais vulneráveis.
"[Os países se comprometem em] fazer da voz da América Latina e do Caribe uma voz única na COP30 em todos os assuntos de interesse comum para a nossa região", diz a carta.
De acordo com os negociadores ouvidos pela reportagem, há ainda um outro elemento importante para essa equação. O Brasil tem uma das diplomacias mais tradicionais e fortes do mundo. Nas negociações climáticas, portanto, costuma ser um dos países mais ativos e vocais.
Porém, a tendência é que neste ano a atuação brasileira seja mais discreta, ou retraída, conforme defendem esses negociadores, uma vez que a nação detém também a presidência da COP.
Isso porque, pela norma das tratativas, a liderança da conferência deve atuar de forma imparcial e como uma facilitadora para o acordo, seja ele qual for -o mecanismo da UNFCCC, o braço climático da ONU-, obriga que todo e qualquer documento só pode ser aprovado se houver total consenso, não abrindo espaço para divergências.
Portanto, a atuação da diplomacia brasileira terá que tomar precaução para que não acabe criando grandes divergências e prejudicando a atuação de sua presidência. Por meio da frente, explicam os negociadores, o Brasil ganha um espaço para conseguir apoio e respaldo para seus posicionamentos.
*O repórter viajou a convite do Instituto Talanoa.