• Home/
  • Notícias/
  • Cultura/
  • Dia Internacional dos Povos Indígenas: desafios da autodeclaração e invisibilidade na luta antirracista
Cultura

Dia Internacional dos Povos Indígenas: desafios da autodeclaração e invisibilidade na luta antirracista

Christian Correira, natural do Amazonas, conta suas experiências como pessoa indígena no território baiano; a autodeclaração indígena ainda é um impasse social e político

Por Giovanna Amorim
Ás

Atualizado
Dia Internacional dos Povos Indígenas: desafios da autodeclaração e invisibilidade na luta antirracista

Foto: Reprodução

O Dia Internacional dos Povos Indígenas foi decretado pela Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 9 de agosto de 1995, para garantir os direitos humanos às populações indígenas e à pluralidade do seu povo. No entanto, a autodeclaração indígena ainda é um impasse social e político, colocando-os em uma posição de invisibilidade, principalmente, nos debates raciais.

Em entrevista ao Farol da Bahia, Christian Correia, um caboclo manaó, natural do Amazonas, de família ribeirinha, conta a sua experiência após se mudar para a Bahia, em busca de um bem viver e uma melhor qualidade de ensino. Ele conta que foi lido como uma pessoa asiática devido aos seus marcadores raciais e, durante o período pandêmico, chegou a ser acusado de trazer o vírus para o estado. 

“Eu me mudei pra Bahia em 2021, bem no período pandêmico, 5 dias antes de colapsar a saúde no meu estado. De início não foi tão agradável assim, devido aos meus marcadores raciais, me colocavam quanto um corpo asiático. Nos transportes públicos, já chegaram a me culpar de trazer o Covid-19, algumas pessoas nem se aproximavam direito”, contou ele. 

Christian relatou que, ao se autodeclarar indígena, sofreu racismo nos locais que prestou serviço e na universidade. Ele recebeu questionamentos se sua família andava nua, se invadiam terras e, já pediram para ele tocar um maracá, chocalho de origem indígena que não está presente em todas as etnias – incluindo a dele.

“Não é porque eu sou indígena que eu sei tocar um maracá. Não é porque eu sou indígena que eu vou usar um cocar, alguns povos nem tinham cocar. As pessoas criam um ideal do que é ser indígena e acabam perpetuando esse tipo de racismo. É muito ruim pra mim ter que ficar me explicando o tempo todo”, declarou ele. 

Apesar dessas questões, Christian diz que mantém uma relação de aprendizado e respeito com os soteropolitanos, principalmente depois de matar a curiosidade da pessoa sobre sua nacionalidade. Ele acredita que essas situações acontecem pela exclusão da cultura indígena na educação e devido a má representação midiática. 

“Devido os historiadores excluírem a diversidade do nosso povo, as pessoas criaram uma ideia de que indígena é aquele que a gente vê em novelas e séries, que vive na aldeia, excluindo os de contexto urbano que sequer pertencem a uma aldeia”, afirmou ele. 

Christian também relatou que se sentiu muito mais acolhido entre os Tupinambás que conheceu no bairro de Itapuã. Ele afirma que “Salvador é terra Tupinambá”, devido a forte influência cultural na cidade.

Em ambientes mais racializados, Christian diz que consegue passar despercebido, mas quando o ambiente é majoritariamente branco, essas situações se tornam mais comuns, apesar de receber perguntas desconfortáveis de ambos os lados. 

A forte presença da cultura dos povos originários na cidade de Salvador pode ser notada no nome dos bairros, como Itapuã e Jaguaribe. Christian aponta que o resgate da cultura indígena na capital baiana pode tirar o indígena desse local de invisibilidade. 

“Prestem atenção nos nomes dos bairros da cidade de vocês, observem a cultura das pessoas, resgatem a cultura. Salvador tem muito potencial para que seja uma cidade que valorize a sua cultura e tire do invisível o indígena. 

Contexto histórico, político e social

A colonização do Brasil se iniciou no estado da Bahia. A capital baiana, com mais de 3 milhões de habitantes, é considerada a cidade mais negra fora do continente africano. Com isso, ela é vendida midiaticamente como uma cidade afro, esquecendo da sua ancestralidade indígena. 

A Bahia também é o estado com o maior número de indígenas no Brasil, atrás apenas do Amazonas. Juntos, concentram 42,51% dessa população total do país.  

Não é novidade que o Brasil concentra uma população miscigenada e diversa, um fator que dificulta o processo de autodeclaração de muitos, principalmente, a dos povos indígenas que carregam um estereótipo fora da realidade. 

A Fundação Nacional do Índio (Funai) fixou os critérios complementares para a autodeclaração indígena, em 2022, com o objetivo de padronizar e dar segurança jurídica ao processo de heteroidentificação, evitando fraudes.

Entre eles, estão: 

* Vínculo histórico e tradicional de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro;
* Consciência íntima declarada sobre ser índio (autodeclaração); 
* Origem e ascendência pré-colombiana (existente o item a, haverá esse requisito aqui assinado, uma vez que o Brasil se insere na própria territorialidade pré-colombiana); 
* Identificação ao indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científicos e cujas as características culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia. 

O Farol da Bahia entrou em contato com líderes indígenas para questionar a validade destes critérios, visando a pluralidade desses povos:

Cleiton França Tupinambá acredita que os critérios são aceitáveis, mas que podiam ser mais rígidos, exigindo uma comprovação cronológica dos registros familiares, confirmados através das declarações dos caciques e lideranças. 

Nicinha Tupinambá, também acredita que a autodeclaração deveria ser acompanhada pela declaração dos componentes da comunidade que cada um está inserido. “Eu digo que sou indígena de tal etnia, mas há uma liderança, um cacique, que confirma minha posição”, argumenta ela. 

Zeca Pataxó afirmou que os critérios precisam de uma revisão, pois, “atualmente, basta o indivíduo se autodeclarar indígena para ser aceito, com isso, traz uma nova discussão a respeito de mudanças na legislação, onde os verdadeiros povos estão sendo prejudicados nos processos legais e regulamentares”. 

Já o secretário do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia, Guinaldo Pataxó Hã-hã-hãe, apontou que os critérios não correspondem à maneira de reconhecer os nossos povos, faltando levar em consideração as diferenças culturais de cada povo. 

Invisibilidade na luta antirracista

As dificuldades da autodeclaração e invisibilidade social acaba afetando também na luta contra o racismo. Os povos indígenas são lembrados em datas como essas, mas, na educação e na mídia, estão presos na visão colonizadora. 

Assim como Guinaldo aponta, “os debates sobre racismo não nos contempla, pois a ideologia política da maioria dos formadores de opinião não consegue se libertar das ideias dos invasores”. Ele também relata que essa exclusão também impacta em outros interesses dos povos indígenas, como a luta pela sobrevivência e o direito a terras.  

Cleiton França acredita que os indígenas só são vistos em imagens de campanha, mas as políticas antirracista não os contempla. “Só há verdadeiramente uma queda no racismo quando as pessoas se veem no outro, e, enquanto formos banalizados e tratados com todo tipo de estereótipo possível, ninguém vai querer se ver em nós, o que inviabilizará essa luta antirracista”, declara.

Nicinha também afirma que os indígenas não estão incluídos nas pautas raciais e usa de exemplo as cotas raciais, “os negros têm mais direito do que nós. É uma vergonha para um país indígena desconhecer essa discriminação que o próprio governo faz. O próprio governo é racista conosco, discrimina o nosso ser, nossa maneira de viver, nossas atitudes, nossos gestos, nossa casa”, diz ela.  

“Nós somos os povos originários, somos os donos do Brasil, embora não façamos questão de tudo. Nosso coração é grande, dividimos com todo mundo”, completou Nicinha Tupinambá. 

Com o reconhecimento histórico da presença dos povos indígenas antes da invasão dos europeus, eles receberam o nome de “povos originários”, sendo eles os descendentes dos primeiros habitantes do território brasileiro, banalizando o termo “índio”, dado pelos colonizadores sem considerar a diversidade das etnias. 

Desde então, os indígenas lutam pela visibilidade da diversidade dos seus povos, garantia de direitos e inclusão na luta contra o racismo. O racismo é uma violência que atinge de forma diferente cada minoria. 

As nuances do racismo contra os diferentes povos precisam ser reconhecidas para a garantia de direitos. Com os indígenas sendo tratados como invisíveis, excluindo a potência dessa ancestralidade, o combate a violência que atinge a eles também será invisibilizada, não se combate o que não se conhece e o que não é visto. 

Assista entrevista com Christian Correia


 

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie:[email protected]

Faça seu comentário