Ilê Aiyê: primeiro e maior bloco afro do Brasil completa 50 anos de história e luta pela igualdade racial
Fundado durante a Ditadura Militar, a trajetória do Ilê Aiyê inspirou a população negra do Curuzu a lutarem contra o racismo
Foto: Divulgação
Quem não conhece a fundo o Ilê Aiyê, pode achar que ele está vinculado somente ao Carnaval, mas essa história vai além da folia. Nesta sexta-feira, dia 1° de novembro, o primeiro e maior bloco afro do Brasil comemorado 50 anos de luta pela igualdade racial e valorização da cultura negra.
O ‘Mais Belo dos Belos’ foi fundado em novembro de 1974 por Antônio Carlos dos Santos, conhecido como ‘Vovô do Ilê’, e Apolônio Souza de Jesus, apelidado de Popó. O Ilê é sediado no terreiro Ilê Axé Jitolu, fundado e liderado durante décadas por Mãe Hilda, outra figura de extrema importância para a história da instituição.
Foi Mãe Hilda, inclusive, que orientou Vovô a ‘batizar’ o bloco como "Ilê Aiyê, do idioma yorubá - língua africana conhecida por ser a ‘língua dos orixás’. O nome carrega a ligação do bloco com as heranças ancestrais e com os costumes sociais e culturais da Mãe África: Ilê significa Casa, e Aiyê é Terra, sendo assim, o Ilê Aiyê é "Nossa Casa" ou "Nossa Terra".
A identidade visual do bloco marca presença onde chegar. As cores, trajes e estampas foram projetadas para enaltecer a beleza negra. O conceito ancestral do Ilê Aiyê é representado por uma máscara: o perfil azeviche, máscara ritualística africana que simboliza a natureza, humanidade, coletividade e transcendência espiritual.
O perfil azeviche também representa a "cara preta" do Ilê, lembrando que o bloco foi criado, inicialmente, para ser formado somente por pessoas negras retintas. Em entrevista ao Farol da Bahia, o Vovô do Ilê contou que Apolônio era bem rígido na seleção de quem deveria participar do bloco. “Se passasse a unha e não ficasse 'foveiro' [ressecado, com aspecto acinzentado], não entrava”, disse ele.
Foto: Joá Souza/GOVBA
“Que bloco é esse?”: o nascimento do primeiro bloco afro do Brasil
“Que bloco é esse? Eu quero saber. É o mundo negro que viemos mostrar pra você” - o verso da música “Que Bloco é esse?” explica as raízes do Ilê Aiyê.
O bloco marcou uma época de ascendência de vários movimentos negros ao redor do mundo: o movimento Panteras Negras e Black Power; a prisão da professora e ativista na luta contra o racismo, sexismo e opressão de classe, Angela Davis, nos Estados Unidos; criação do Dia da África no dia 25 de maio, em 1972; e a independência de vários países africanos, como Cabo Verde, Angola e Moçambique.
Já no Brasil, o cenário era de extrema violência durante os 21 anos da Ditadura Militar (1964 - 1975). O Vovô do Ilê contou que a criação do bloco desagradou muitos naquela época, e seus integrantes se tornaram alvos da repressão policial.
“O primeiro ano do Ilê Aiyê, desfilamos com o carro do vereador daqui e o carro foi preso, sumiu. A polícia militar acompanhava os nossos desfiles, o ensaio era aqui [Curuzu] na ladeira. Tinha uma patrulha chamada ‘mista’, que saía nos fins de semana, e qualquer tumulto o ensaio era suspenso. Você apanhava até por ter documento demais”, afirmou.
Vovô também contou que o tratamento era muito “bravo”, e que os policiais chegavam com pedaços de pau para intimidar. “Mas a gente resistiu muito. Tivemos vários ensaios suspensos. Éramos obrigados a levar todas as fichas na Secretaria de Segurança para eles [os policiais] darem o visto porque não acreditavam que não éramos marginais. Foi um período muito difícil pra a gente”.
“O negro sempre é vilão”, completou.
O primeiro disco foi gravado somente em 1984, chamado de Canto Negro l. As músicas como “Que bloco é esse?”, “Mãe Preta” e “Depois que o Ilê passar” são alguns dos maiores destaques.
E assim, o bloco continuou sua trajetória de sucesso, mas ele não se limitou só a música. O Ilê Aiyê também apresenta uma outra face voltada para a educação da cultura negra. Ações como o Projeto de Extensão Pedagógica do Ilê Aiyê, criado em 1995, atua com a distribuição do Caderno de Educação.
O Caderno foi idealizado pelo poeta e professor e, então, diretor Jônatas Conceição e pela pesquisadora, professora e diretora do bloco Maria de Lourdes Siqueira.
Através desse projeto, a Band’Erê também teve suas ações ampliadas. A iniciativa foi criada em 1992 para promover atividades extracurriculares para crianças e jovens. Os participantes recebem aulas de percussão, literatura, dança afro, canto e muitas outras para contribuir com a formação pessoal, social, cultural e profissional de cada um.
O Ilê contribuiu, não só com a preservação da cultura negra, mas com a expansão da cultura afro-brasileira, permitindo que a comunidade negra se aproximasse mais da ancestralidade e, consequentemente, de si mesmos.
Maximu D’Pedra, em 2013, quando tinha 9 anos, foi aluna de percussão; ética e cidadania; toque sagrado; informática; dança afro; português e matemática e perna de pau. Ela afirma que o Ilê Aiyê agregou muito para a vida profissional e autoestima.
“Pra mim, o Ilê representa muito a minha vida. Desde criança eu saio no Ilê, eu o acompanhei por muito tempo. Eu me destaquei bastante por eu ser uma pessoa com deficiência e dançava muito bem. Eu pude conhecer um pouco de Salvador e regiões vizinhas através do Ilê”, afirmou.
Maximu D’Pedra é uma mulher trans, não binária e pessoa com deficiência. Para ela, o Ilê Aiyê foi um local de inspiração e acolhimento.
“Através das danças, me ensinou a me amar mais, ter esse empoderamento, ter uma autoestima forte. Me ajudou a ser essa pessoa que fala, que questiona, porque lá tem muitas figuras inspiradoras, referências que me fizeram ser quem eu sou. Eles não viam se você era LGBT ou não, eles te veem como uma criança que precisa aprender”.
Hoje, aos 19 anos, Maximu participa do Projeto PJT Modas e Periferia do Futuro, no Ilê, e é dona do próprio negócio. Ela se inspirou em Dete Lima e criou a Mayakas Maxima, após se formar com artesã através do bloco.
Foto: Alex Carvalho
Deusa Ébano e a valorização da mulher negra
O concurso da Deusa Ébano acontece anualmente, desde 1976, para valorizar a mulher negra, que dificilmente era representada como uma rainha, já que no período de criação os concursos de beleza só enalteciam mulheres brancas.
Maria de Lurdes dos Santos Cruz, hoje com 65 anos, mais conhecida como Mirinha, foi a primeira Rainha do Ilê Aiyê, como era chamado o concurso antigamente. Ela contou ao Farol da Bahia que se vê como exemplo para as rainhas que vieram depois, e que a participação no bloco deu a ela liberdade, autoridade e ousadia de ser quem é, além do poder se defender do racismo.
“Eu tenho certeza que a minha maneira de ser, estou passando pra todas elas. O Ilê me deu força para mostrar que eu não tenho que ter vergonha do que eu sou. Se deixarmos essa gente fazer o que eles querem, teremos que abaixar a cabeça durante a nossa vida toda. O Ilê nos ajuda a sermos autoritárias e ousadas. É uma satisfação muito grande pra mim ser o que eu sou: negra e ousada, não levo desaforo de ninguém”, completou.
Foto: Reprodução/iBahia
Mirinha tinha 15 anos quando participou do concurso. Com Larissa Valéria Sá Sacramento, aos 29 anos, não foi diferente. Ela foi a Deusa Ébano deste ano e, apesar das épocas diferentes, ambas tiveram experiências semelhantes: duas deusas que perderam a vergonha e receberam a força do Ilê para não desistir.
Larissa contou que a motivação dela para participar do concurso nasceu ao ver os desfiles do Ilê Aiyê na porta de casa. “Uma das minhas maiores motivações foi justamente o bloco afro. Ver a passada da Deusa do Ébano na porta da minha casa com trio elétrico, trazendo toda aquela comunidade, emocionando todo mundo quando passava”, explicou ela.
Após o prêmio, Larissa conta que virou uma inspiração dentro da própria família. “Minha irmã sempre me motivava, concorreu junto comigo e eu sempre disse pra ela que nada melhor do que conquistar isso juntas de mãos dadas”.
“O Ilê Aiyê é um marco de resistência, um marco de poder, de história. Eu sou empresária na área da beleza, onde eu enalteço penteados afros, tranças, alongamentos, essa também foi uma forma que o Ilê abrangeu na minha vida, me incentivando a não desistir. A gente sabe que hoje a sociedade fala sobre o povo preto, não temos todas as portas abertas, mas não posso negar que portas não se fecharam para mim”, completou.
Por trás dos looks, Dete Lima, estilista do Ilê Aiyê há 50 anos, monta os trajes da Deusa Ébano na noite da Beleza Negra. O Farol da Bahia fez uma matéria especial com ela dando mais detalhes sobre como funciona essa produção.
O cinquentenário do bloco marcou gerações com músicas, educação e política
Com as ‘músicas tema’ e a representatividade da cultura africana no Ilê, Vovô acredita que 50 anos depois os negros são mais valorizados. “A partir de que o Ilê começou a contar a história de países negros, de África pela nossa ótica, como a gente é objeto de estudo de pesquisador, de branco, as pessoas começaram a valorizar” disse ele.
“As pessoas só conheciam a África de Tarzan. Com a música tema, como nós chamamos, a que informa e educa, nós criamos o Festival de Música Poesia que fala do homem e da mulher negra de forma positiva. Tudo que a gente ouvia que negro é feio, que negro fede, que tem cabelo ruim, a música manda tudo de forma positiva. Isso ajudou bastante no resgate e no orgulho de ser negro”, completou.
50 anos não são 50 dias. O cinquentenário do primeiro e maior bloco afro do Brasil marcou a vida de gerações. Trazendo o resgate da cultura africana e incentivando o contato com a ancestralidade, o Ilê Aiyê transformou a vida do povo negro brasileiro. Mas apesar da longa história, o Vovô ainda não se sente contemplado, visando que ainda há um desequilíbrio entre negros e brancos na política.
“A gente faz música, mas também faz política. Ainda mais para conscientizar o povo negro, resgatar esse orgulho, uma das formas é a gente participar do poder. Se o poder é bom eu também quero poder”, disse o Vovô.
Vovô reforça a necessidade de acreditar nas candidaturas negras na política e equilibrar o poder entre negros e brancos. “Pra eu me sentir contemplado eu preciso me sentir representado nas mesas. Eu quero um negro presidente”.
Reprodução/AlôAlôBahia