"Nem prefeitura, nem empresas, nem sindicato se preocupam com nosso sofrimento", dizem rodoviários do transporte municipal
Categoria pede ainda pelo fim de novo sistema implantado pela Plataforma e OT Trans
Foto: Ilustrativa/Joa Souza
"A gente tem que ver, ouvir e não falar nada porque somos retaliados". Foi com essa declaração que o motorista da Ótima Transportes [OT Trans], que terá a identidade preservada, resumiu a situação sofrida pelos rodoviários de Salvador. Há duas semanas, a categoria realizou uma paralisação das atividades, por algumas horas, para chamar a atenção dos empresários, da prefeitura e da população sobre os abusos que têm passado pelas empresas Plataforma e OT Trans, que fazem parte da Integra Salvador.
Com uma jornada de 9h20 diárias, sendo 20 minutos de intervalo, o motorista explicou, com exclusividade ao Farol da Bahia, que apenas sete horas de trabalho constam no registro CLT, mas que as outras duas horas são extras que fazem nas empresas. Antes da campanha salarial de 2022, as horas excedentes eram pagas em dinheiro, mas passaram a constar no banco de horas, onde a categoria desconta com folgas ao longo do mês.
"Temos uma convenção coletiva que diz que os rodoviários têm que trabalhar sobre o banco de horas, mas nós não conseguimos nem folgar. Tem trabalhadores com 100, 110 ou até mais horas, e não conseguem usufruir. A gente não pode reclamar, nem falar das horas porque se falarmos somos assediados moralmente", disse o prestador de serviço, que trabalha na profissão há pelo menos 27 anos.
"Pelo acordo coletivo deveriam ser 7 horas de trabalho e 20 minutos do café. Mas, tem muitos trabalhadores que trabalham com carros fazendo duas horas extras diariamente. Malmente conseguimos ir ao banheiro e tomar o nosso café", acrescentou.
No caso do rodoviário que está próximo de completar as sete horas e tem o ônibus assaltado, ele obrigatoriamente precisa ir a delegacia prestar o boletim de ocorrência. Depois de registrar a queixa, ainda precisa completar as duas horas restantes. "A gente sabe que não temos essa obrigação, mas a empresa obriga e nós vamos com medo de sermos demitidos. Muitas vezes, a gente não faz nem as duas horas apenas, fazemos até mais, 9h40, até 10 horas", explicou.
Um cobrador da Plataforma ouvido pela reportagem, que também terá a identidade preservada, reafirmou a situação da carga horária. "Pela CLT da gente, a carga horária seria 7h20, mas aqui eles colocam a pessoa para trabalhar 9h20 intermitentes, batendo e voltando. As viagens são uma em cima da outra. Se você chega mais cedo no terminal, eles colocam você para fazer outra viagem, só para não ficar parado. Não tem fiscalização da prefeitura e quando tem, fazem vista grossa.", denunciou.
Outra situação parecida também foi relatada pelo cobrador. Segundo ele, caso o veículo pegue trânsito e comprometa parte do horário que seria do intervalo, tanto ele quanto o motorista descansam apenas o tempo restante dos 20 minutos que foi utilizado por causa do congestionamento.
"Nos intervalos temos que ser muito rápidos, e se pegarmos trânsito e não chegarmos no horário correto, dentro de cinco minutos temos que tomar o café e sentar no banco novamente para voltar a trabalhar. Se falar muito com eles, você já fica visado lá dentro. Dizem que você está falando muito ou pedindo muito, aí você tem que ficar calado", explicou.
"Goal sistem" e as viagens intermináveis
Uma das principais queixas da categoria é o sistema "goal sistem" que foi implantado pelas empresas, mesmo com a desaprovação dos trabalhadores. O aplicativo consiste em um único carro realizar viagens em diversas linhas no formato "bate e volta", como explica uma cobradora da Plataforma, que terá o nome preservado.
"Chegamos nos terminais e somos obrigados por despachantes das empresas, prepostos da Semob [Secretaria de Mobilidade Urbana], a seguir viagem imediatamente para outras linhas. Não temos a quem reclamar, pois, se chamarmos o sindicato, eles ainda dizem que estamos errados e, se insistimos, nas reclamações somos retirados das linhas para outras linhas piores, somos suspensos e até mesmo demitidos", relatou ao Farol da Bahia.
O mesmo problema foi relatado pelo motorista da OT Trans. "Eles criaram um sistema chamado "goal sistem", que coloca os motoristas e cobradores para dar viagens em várias linhas. Por exemplo, eu vou rodar em uma linha, aí quando volto para o final de linha, o despachante já me manda para outra linha, aí eu volto para o final de linha e me manda para outra novamente. Isso causa um distúrbio", desabafou o funcionário. "O preposto da SEMOB não ajuda a gente em nada. Só atrapalha."
Questionado se a insatisfação foi levada ao sindicato, o motorista explicou que ninguém dá uma resposta sobre o tema. "A gente não consegue ter resposta de ninguém, nem das empresas, nem da prefeitura e nem do sindicato que nos representa. É uma verdadeira política. A gente não diz nada porque se falar, somos retaliados ou demitidos", acrescentou.
Punições e multas recorrentes
Além da jornada exaustiva, os rodoviários também lutam para dar fim às punições e multas recorrentes, onde recebem advertência e ainda precisam pagar por situações que nem foram provocadas por eles. Uma das situações denunciadas ao Farol da Bahia é quando o ônibus "abalroa" (quando choca contra outro ou algo).
"Se a gente abalroar nós somos punidos e temos que pagar. Muitas das vezes tomamos até suspensão e advertência escrita. É um terror e pânico psicológico que a gente vive", explicou o motorista da OT Trans.
Outra situação relatada por ele e por outros rodoviários ouvidos envolve os passageiros que não entram pela frente do veículo e pagam o transporte, e acessam o ônibus pelas portas dos fundos. A recomendação das empresas é que o motorista pare o veículo e peça ao passageiro que desça, mas os trabalhadores afirmam ter medo, por não saber do que o cidadão pode ser capaz de fazer.
"A violência está no país como todo, mas aqui em Salvador observamos essa crescente. Quando a gente para nos pontos, muita gente entra na porta dos fundos e a empresa quer que a gente pare o carro e vá mandar o cidadão descer. Quando a gente não faz isso, eles nos chamam na empresa e dizem que a gente deu carona. O cara entra pelo fundo, você não sabe se ele tá armado, você não conhece ele e vai para o carro para brigar com ele e mandar ele descer? Para quando for na volta, ele jogar uma pedra ou te dar um tiro? A gente fica em uma situação que não sabe se faz o que a empresa pede ou se faz o que o coração manda", afirmou.
O cobrador da Plataforma também reforçou que o rodoviário chega a ser advertido e demitido, a depender da situação, caso ele não pague o valor da multa repassado pela empresa. "Se houver qualquer colisão, ainda que o motorista não tenha culpa, o trabalhador é retirado da escala e ainda é capaz de perder o emprego. É muito assédio porque o rodoviário sabe que precisa do emprego, então acaba pagando o valor", contou.
Horas extras fantasmas e férias não programadas
As duas horas extras diárias feitas pelos rodoviários, que foram mencionadas no início desta reportagem, são acumuladas e ficam disponíveis no aplicativo, acessado pelos trabalhadores. Ou pelo menos é o que deveria acontecer. De acordo com os profissionais ouvidos, tirar as folgas muitas vezes não é uma opção dada pelas empresas, isso porque a contagem das horas é zerada com um simples "bug" ao aplicativo.
"Todo dia 1º dá um bug no sistema da contagem de horas e elas somem. Se a gente não ficar tirando print da tela e guardando, todo mês somos lesados. E mesmo assim com os prints, a empresa diz que não tinha as horas perdidas não. É a palavra deles contra a nossa e ficamos no prejuízo. Eles dizem: Se você não quer, peça para sair porque lá fora tem um monte que quer estar no seu lugar", relatou o motorista.
O mesmo problema foi denunciado pelos cobradores também ouvidos pela reportagem, que alegaram trabalhar o mês inteiro juntando as horas extras e no final, aparece a metade ou menos do acumulado.
"Aqui a gente folga quando eles querem. Tem vezes que a gente faz tantas horas e vai olhar no sistema, mas só aparecem duas só. As horas somem. Você tira o print e leva no celular, quando chega lá, mesmo assim, eles dizem que o número não é o mesmo do sistema. Quando eles querem dar, mandam um "zap", mas quando você vai pedir, eles nunca dão, dizem que não pode. A pessoa se acaba fazendo as horas extras e quando precisa não podem dar porque não tem rodoviário para cobrir você", denunciou o cobrador.
"Os aplicativos, tanto da Plataforma quanto da OT Trans, quando chegam próximo das datas de pagamento, simplesmente saem do ar, dá bug. Quando retorna ao ar, quem tinha 100 horas, inacreditavelmente some algumas horas", acrescentou a outra cobradora.
Outra situação abordada pela categoria é as férias não programadas. Segundo um dos profissionais ouvidos, muitos rodoviários precisam aguardar o período de um ano e 11 meses para conseguir as férias e ainda aguardar o mês escolhido pelas empresas. "Férias não são programáveis, só se for peixe de algum diretor ou gente grande da empresa", disse um trabalhador.
"Eu achei que os rodoviários tiravam as férias com um ano de serviço, mas aqui você só tira com um ano e onze meses. Tem muitos funcionários que não aguentam, colocam atestado. E as férias nem são comunicadas. Tem empresa que programa certo as férias do trabalhador, aqui não. Eles dizem que você está de férias e acabou", denunciou outro. "Quem fiscaliza?" Ninguém, disse o funcionário. "O prefeito só está preocupado da gente não fazer greve para não atrapalhar a campanha dele. Nunca apareceu para dizer nada pra gente sobre estes problemas nas empresas", disse outro.
"Folgas não conseguimos nos programar também. A empresa põe a gente de folga no sábado, por exemplo, quando chega na quarta mudam nossa folga para o domingo, sem prévio aviso. Temos que solicitar às empresas 48 horas antes da data de nosso interesse e a empresa simplesmente diz "acompanhe o aplicativo" mas a folga nunca vem", explanou a situação.
O banco de horas tem duração de um ano e a cada 1º de maio, assim como toda a campanha salarial, é colocado em votação aos trabalhadores. No entanto, os trabalhadores se dizem ameaçados, quando opinam sobre a retirada.
"Hoje o que nós trabalhadores queríamos é que terminasse esse banco de horas porque não estamos mais aguentando. Às vezes a gente pega um carro com a janela de baixo blindada, que não abre, fica um calor excessivo do tempo e da temperatura do próprio carro, do motor. A gente também luta pela insalubridade porque é muito barulho, mas não temos ninguém para nos acolher sobre o tema", relatou o motorista.
"Temos um banco de horas implantado que a categoria não aprovou, mas que insistem em manter. Com isso, as empresas tiram nosso coro, com cargas horárias escorchantes, exaustivas e desumanas. Eles nunca nos perguntaram se aprovamos a implantação do banco de horas, nunca nos perguntam se aceitamos renovar o banco de horas. Fazem todas as firulas possíveis na campanha salarial, só para manter esse sistema de escravidão", desabafou a cobradora da Plataforma.
Trabalho exaustivo e saúde comprometida
Os trabalhadores também informaram à reportagem que desenvolveram doenças devido à implantação do "goal sistem". Com o intenso "bate-volta" e os 20 minutos de intervalo, que podem ser reduzidos - caso peguem congestionamento -, os rodoviários afirmaram que, na maioria dos dias, as refeições são feitas de forma rápida e, por esse motivo, optam por salgados, cafés e sucos da rua, sem saber a procedência.
"Eu passei certo tempo fazendo tratamento no estômago porque eu não conseguia me alimentar direito e peguei a bactéria H. pylori. Fiquei tomando medicamento de manhã e de noite para matar a bactéria. Na maioria das vezes, a gente tem que comer muito rápido e acaba optando por salgados, sem saber desde quando está ali. Isso tudo foi me causando mal, comecei a ter sensação de desmaio dirigindo e quando eu procurei um médico, fiz alguns exames e fui diagnosticado com gastrite e H. pylori", explicou o motorista da OT Trans.
A mesma situação foi relatada pelo cobrador da Plataforma. "Eu também já tive gastrite e H. Pylori e foi um gasto enorme. A situação é muito complicada. Também tenho problemas com ansiedade, muita ansiedade. Lidar com pessoas é muito difícil e a gente acaba desenvolvendo muitas doenças", pontuou.
"A gente não tem um centro psicológico para nos dar um acolhimento e suporte. Eu fui assaltado várias vezes, já tomei tapa, coronhada e isso tudo eleva o nível de estresse. Quando eu estava nos meus piores momentos, eu fui na empresa para conversar com a psicóloga e ela disse para mim que não fazia trabalho de psicologia para conversar com os trabalhadores não, que o trabalho dela era apenas na hora da contratação. Ela recomendou que eu procurasse uma psicóloga de fora. Aquilo ali me deixou pior do que a situação que eu já estava porque você tenta buscar apoio em uma clínica, mas demora de você conseguir os especialistas", disse outro. " Consulta pela UPA é impossível marcar. Não adianta dizer que você carrega um monte de gente e coloca a vida destas pessoas em risco. Nunca conseguimos marcar uma consulta. O prefeito que só se preocupa se vamos parar para fazer greve deveria ajudar e colocar pelo menos psicólogo para atender a gente nos postos."
Categoria alega que sindicato não a representa
Entre as reivindicações da categoria, foram observadas críticas recorrentes ao sindicato que representa os rodoviários, atualmente presidido pelo vereador Hélio Ferreira (PCdoB). Ao Farol da Bahia, os funcionários afirmaram que a equipe de diretores não os representam e que sempre sofrem retaliação quando expõem alguma opinião sobre algo.
"A gente não pode comentar nada em grupo, principalmente de sindicato, se a gente comenta, você é tachado e pedem a sua cabeça", disse um rodoviário cuja identidade foi preservada.
Foi relatado à reportagem que reclamar com o sindicato pode acarretar punições, como ser retirado de uma linha para outra pior ou, até mesmo, ser demitido. "Não temos a quem reclamar, pois, se chamarmos o sindicato, eles ainda dizem que estamos errados e se insistimos nas reclamações, somos retirados das linhas para outras linhas piores, somos suspensos e até mesmo demitidos", destacou a cobradora da Plataforma.
"O trabalhador que se atrever a reclamar nos grupos da categoria de qualquer coisa, o próprio sindicato pede a cabeça daquele trabalhador aos empresários. Recentemente tivemos um da OT Trans que reclamou falando mal do sindicato nos grupos, isso foi no domingo, e na quarta feira ele foi demitido", denunciou.
A crítica sobre o sindicato não ouvir a própria categoria também foi relatada por outro funcionário. "Eu sou rodoviário há pelo menos 27 anos e nunca vi essa entidade (sindicato) tão relapsa com nós trabalhadores. Hoje a gente não quer nem ouvir o que vem dessa galera porque passamos mal. Depois que fechou a CSN e a prefeitura não cumpriu o que prometeu de resolver nosso dinheiro, aí então que lutamos para receber as nossas rescisões", disse o motorista.
"Retirando esse banco de horas ilegal, regularizando o FGTS dos trabalhadores e mudando esse sistema de "goal sistem", as coisas melhorariam bastante". "Os poderosos tem que pensar que podemos parar essa cidade. Eles tem que valorizar o nosso trabalho. Os órgãos públicos que são a prefeitura e a Semob, precisam cuidar de nós e não deixar fazerem isso com a gente". finalizou a funcionária.
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