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Nem todo crime está tipificado no Código Penal – o caso da Escola Odorico Tavares

Confira o artigo de Bernardo Guimarães C. Ribeiro

Por Da Redação
Ás

Nem todo crime está tipificado no Código Penal – o caso da Escola Odorico Tavares

Foto: Arquivo Pessoal / Reprodução

Faz tempo que venho pensando no que escrever sobre o crime do fechamento da Escola Odorico Tavares, localizada num dos endereços mais nobres de Salvador, ocupando uma grande área numa avenida repleta de museus, lugares históricos e luxuosos prédios da capital baiana. A demora em tirar esse nó da garganta deu-se em virtude de um misto de decepção, necessidade de entender os fatos e falta de tempo. Mas nunca é tarde para alertar as pessoas sobre a falácia da justificativa apresentada pelo estado da Bahia.

Retrocedendo um pouco, houve um episódio que adiante servirá a elucidar alguns fatos: em meados do ano passado, enquanto me dirigia ao trabalho, naquela mesma avenida, deparei com um movimento de estudantes do Odorico Tavares. Até aí, nenhuma novidade. O que me chamou mesmo a atenção foi não haver nenhum partido político ou mesmo a UNE no momento. Isso foi muito evidente – não havia qualquer bandeira que os identificasse, o que é muito habitual nos protestos desse tipo. Retornaremos a esse ponto mais tarde.

Por que o fechamento de uma escola pública pode ser tão relevante diante da promessa de que outras serão criadas? Essa é a falácia que tentam empurrar goela abaixo dos alunos e dos cidadãos em geral e é precisamente ela que irei destruir nos tópicos seguintes:

1. Comportamento influencia comportamento. O convívio dos estudantes em um bairro civilizado, limpo, bem cuidado, frequentado por pessoas com bons modos e boas práticas tende a fazê-los absorver tais elementos com naturalidade, muitas vezes em oposição aos próprios locais onde residem. O alunado descobre na prática um conjunto de comportamentos sociais que reforçam os laços de confiança mútua, geradores e facilitadores das relações políticas e econômicas.

2. Insegurança e criminalidade vilãs do aprendizado. Quantos pais e mães – precisamente os que agora leem esse texto – matriculariam seus filhos numa escola onde são frequentes as ofensivas de traficantes e os tiroteios? Se você não hesitou em responder, por que com o pobre seria diferente? Na realidade, um grande agente de evasão escolar consiste na insegurança dos pais em deixar suas maiores joias num espaço inseguro. Agora, simplesmente pense que muitos deles não tem qualquer alternativa.

3. A escola boa não é necessariamente aquela próxima da sua casa. Eis a maior das falácias utilizadas pelo governo para justificar o fechamento do Odorico Tavares. Segundo alegam, outro sistema seria implantado, trazendo a escola para a periferia e evitando o grande deslocamento dos alunos. Primeiro questionamento de ordem lógica: perguntaram isso aos pais e aos estudantes? Evidentemente, não! Todos nós escolhemos as escolas de nossos filhos levando em conta o duplo critério localização/qualidade. Ocorre que a escolha entre escolas particulares normalmente pode dar-se ao luxo de priorizar a proximidade com a residência da família na medida em que há diversas opções de escolas com o mesmo nível. Essa não é, entretanto, a situação das famílias pobres, em que a matrícula em escola localizada num bairro nobre ou pobre muitas vezes é a diferença em ver seu filho seguro ou envolvido com o tráfico.

4. A escola bem localizada gera competitividade sadia entre alunos e professores. Por mais que se alegue que o critério sempre foi (e continuará sendo) o da vinculação ao endereço do alunado para efeito de matrícula, na prática ocorre uma inevitável competição entre alunos e professores pela escola sita em bairro nobre. Alunos buscam qualquer parente próximo à boa escola na tentativa de conseguir uma vaga. Da parte dos professores, evitar ambientes hostis e degradados é o desejo de todos. Disso decorre um inexorável incremento do nível de ambos. Ganham todos, de qualquer ângulo que se enxergue. Foi assim a história do Odorico Tavares: filas intermináveis para a matrícula num passado bem próximo.

5. A escola pública em bairro nobre integra as diferentes classes sociais. Por mais que predominem nas escolas públicas brasileiras as classes menos favorecidas, remanesce um percentual de alunos abastados, seja porque os pais sofreram deterioração no padrão salarial, seja porque desistiram de investir altos recursos num filho desinteressado. Some-se a isso o já mencionado convívio dos alunos com o cenário local, como museus, monumentos históricos e bibliotecas, normalmente frequentados por camadas mais altas da sociedade. Seja como for, há uma maior integração entre ricos e pobres, diferentemente do isolamento e segregação pretendidos com a medida governamental.

Não bastassem esses fundamentos, que são suficientes a condenar o fechamento da escola, há ainda outros um tanto camuflados. Conversando com um ex-estagiário, ex-aluno dessa escola, relatou-me que o processo de sucateamento se iniciara no ano de 2012, ainda durante o governo Jaques Wagner, com contínuas reduções de turmas e extinções de turnos, num processo gradual de diminuição do número de alunos com vistas a sufocar qualquer oposição interna. E a estratégia, não resta dúvida, foi bem-sucedida. 

Aqui retomamos o momento da manifestação de 2019, referida no segundo parágrafo. As coisas passaram a fazer sentido com o anúncio oficial do fim da escola. Assim, logicamente os partidos de esquerda e a União Nacional dos Estudantes, sempre alinhados com o Partido dos Trabalhadores, legenda do governador, não poderiam apoiar os estudantes, que viram sua mobilização minguar diante da falta de apoio. O concerto entre governo, UNE e partidos de esquerda tornou-se ainda mais flagrante quando houve uma ocupação da escola claramente fabricada, durante a qual era possível encontrar figuras ligadas ao PT baiano fazendo figuração e jogo de cena, com o único intuito de minar os protestos. Fato é que o sucateamento progressivo e orquestrado da escola por parte dos sucessivos governos fez encolher o corpo discente, impedindo seu único bastião: a mobilização da massa.

Entre conjecturas que vão desde a necessidade de fazer caixa para atender à parte do investimento público na virtual ponte Salvador-Itaparica até a satisfação da especulação imobiliária num enclave de abastados, prefiro focar no que realmente causará danos irreparáveis ainda não perceptíveis. Meu ex-estagiário, rapaz muito inteligente e preparado, egresso da Escola Odorico Tavares, dá-me todas as razões para condenar a medida, mas o crime não é tipificado e tampouco será punido.

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