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Salvador

O caos da saúde municipal de Salvador: pacientes denunciam filas, falta de médicos e atendimento precário

Farol da Bahia visitou as principais unidades da capital baiana, ouviu especialistas e buscou respostas junto à Prefeitura do município

Por Da Redação
Ás

Atualizado
O caos da saúde municipal de Salvador: pacientes denunciam filas, falta de médicos e atendimento precário

Foto: Montagem

O cenário é desolador: longas esperas, falta de medicamentos e carência de profissionais são parte da rotina de quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) na capital baiana. A realidade enfrentada pela população expõe as falhas de um sistema que, em tese, deveria assegurar o direito básico à saúde, mas que na prática, deixa milhões desassistidos. 

Como a quinta maior capital do Brasil, a cidade lida há décadas com problemas na rede de saúde pública municipal que afetam mais de 2,4 milhões de habitantes, sem que uma solução definitiva esteja à vista.

O Farol da Bahia visitou algumas das principais unidades de saúde de Salvador para revelar a realidade do atendimento na cidade. Além disso, a reportagem ouviu especialistas e autoridades, buscando compreender as causas dos problemas que afligem milhares de soteropolitanos e as medidas que estão sendo tomadas para enfrentá-los.

A saúde de Salvador

Atualmente, a rede de saúde municipal de Salvador é dividida em três níveis de atendimento: Atenção Primária, Secundária e Terciária. A Atenção Primária, composta por Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família (USF), tem a função de resolver até 80% dos problemas de saúde da população, sem a necessidade de encaminhamento para serviços de emergência ou hospitais.

As UBS, que nada mais são do que os tradicionais postinhos de bairros, são indicadas para sintomas leves, como gripe, tontura, dores abdominais e mal-estar, além do acompanhamento de condições crônicas, como hipertensão e diabetes. 

Já na Atenção Secundária, as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) oferecem serviços de média e alta complexidade, funcionando como um intermediário entre as UBS e os hospitais.

A capital baiana conta, hoje, com 162 unidades de Atenção Primária em Saúde. Ao todo, são 116 Unidades de Saúde da Família (USF) e 46 Unidades Básicas de Saúde (UBS). Os números foram divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a pedido da reportagem.

A população soteropolitana tem, ainda, à sua disposição 18 Unidades de Pronto Atendimento (UPA's). Todas elas são geridas pelo município, sendo 14 administradas em parceria com organizações sociais. Há também 389 equipes de saúde da família e 115 equipes de atenção primária.

O Farol da Bahia também solicitou informações sobre o total de pacientes que passaram por todas estas unidades em 2024. Segundo a SMS, de janeiro a julho, foram contabilizados 726.925 atendimentos em todas as UPAs, gerando uma média mensal de 103.846. A quantidade de moradores atendidos nas unidades de atenção primária, contudo, não foi fornecida pela pasta.

A realidade por trás dos números

Na teoria, essa estrutura foi concebida para organizar o atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e garantir uma assistência completa à população. Na prática, no entanto, Salvador enfrenta desafios significativos. Com apenas 70% da população coberta pelos serviços básicos de saúde, a cidade não atinge os índices recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere uma cobertura mínima de 80% para a Atenção Primária à Saúde (APS).

A precariedade do sistema de saúde da capital pode ser vista em diversas unidades da cidade. E não é preciso percorrer muito. Na Unidade de Saúde da Família de Curralinho, responsável por atender moradores da Boca do Rio, Costa Azul, Stiep e Imbuí, por exemplo, a falta de medicamentos é o principal problema.

“Estou desempregado e dependo muito dos remédios daqui. Quando falta, tenho que pedir emprestado porque não posso ficar sem. Pode não ser caro, mas qualquer 20 reais faz falta no final do mês”, desabafa o metalúrgico desempregado Ivanildo de Jesus.

A cerca de 11 km dali, no centro da cidade, está localizada a UPA dos Barris, uma das unidades mais populares de Salvador. Alvo de inúmeras queixas, o equipamento é a opção mais viável para moradores de bairros próximos e até mesmo daqueles que residem em bairros mais distantes.

É o caso do aposentado Ulisses Cerqueira, morador do bairro do Engenho Velho da Federação. À reportagem, ele confessa que muitas vezes desiste de procurar ajuda médica devido à dificuldade que sempre enfrenta quando precisa. "Em Salvador, você é obrigado escolher a [unidade] menos pior. O atendimento é horrível, os funcionários parecem até que estão fazendo um favor para você. Não tem médico. Não tem medicamento. Você é maltratado. Eu só vou em último caso, quando não há mais o que fazer", afirma.

Ariane Rosário, operadora de telemarketing, compartilha uma experiência similar. “Já precisei de atendimento médico, cheguei cedo e esperei até o início da noite sem ser atendida. E quando se trata de serviços odontológicos, nunca há vagas”, lamenta.

No Barbalho, a situação também é crítica. Silvana de Jesus, costureira e moradora do bairro, relata que precisa se deslocar para o centro da cidade para conseguir atendimento. "Para ser atendida no Barbalho, é preciso acordar de madrugada ou até dormir na rua para garantir uma senha. E mesmo assim, não há garantias de que serei atendida", explica.

No 5º Centro de Saúde Clementino Fraga, localizado próximo à UPA dos Barris, as queixas se repetem. Uma paciente, que preferiu não se identificar, revelou que a fila de espera para atendimento psiquiátrico é tão longa que muitos desistem antes mesmo de tentar. 

"Estive aqui dias atrás, mas me informaram que não havia previsão para ser atendida", conta. A realização de exames é outra fonte de frustração para os pacientes. "Prefiro pagar por um exame particular do que perder um dia inteiro de trabalho tentando ser atendida pelo SUS, sem nenhuma garantia", desabafa Maria do Carmo, costureira.

No extremo oposto da cidade, na UPA de São Cristóvão, a reportagem encontrou um ambiente com menor movimento do que o habitual, mas com as mesmas reclamações de demora no atendimento. "Você até passa rápido pela triagem, mas quando precisa de alguma especialidade, como um ortopedista, a demora", afirma Alberto Nonato, vidraceiro.

A unidade também atende pacientes de outras cidades da Região Metropolitana de Salvador (RMS), como a autônoma Stephanie Santos, que precisa se deslocar de Lauro de Freitas para receber atendimento médico. "Lá não tem ortopedista, ginecologista, não tem nada. Sempre mandam vir para Salvador porque não há médicos", relata.

No Centro de Saúde Ramiro de Azevedo, localizado no Largo do Campo da Pólvora, no bairro de Nazaré, a equipe do Farol da Bahia foi surpreendida por uma mulher que, visivelmente emocionada, procurava ajuda para um problema que já perdurava há mais de três anos. Durante a conversa, a acompanhante de idosos Maria José Jesus de Araujo afirma que iniciou um tratamento que, até hoje, não teve fim.

“Eu fui diagnosticada com um tumor benigno há alguns anos. Cheguei a realizar diversos exames e procedimentos iniciais, mas a mais de três anos que não consigo marcar um médico para pôr um fim a esse sofrimento com uma cirurgia que remova esse tumor”, explica.

Durante a entrevista, ela contou que tentou, inúmeras vezes, agendar uma consulta na unidade, mas sempre foi informada de que não havia vagas disponíveis. A reportagem acompanhou Maria José até a recepção do centro de saúde para entender a situação. De acordo com um funcionário, a unidade segue um calendário pré-estabelecido para marcações, com datas específicas para que os pacientes possam agendar suas consultas.

No entanto, essa informação foi contestada por outra paciente que aguardava atendimento. Vanessa Mascarenhas, vendedora que também tenta há meses agendar uma consulta com um clínico geral, apontou que o intervalo de tempo disponibilizado pela unidade é insuficiente, e as vagas se esgotam rapidamente.

“Estou aqui tentando marcar uma consulta com um clínico geral há mais de seis meses. No mural, eles colocam a data de abertura das marcações, mas sempre que venho, mesmo no primeiro dia indicado, já não há vagas”, reclama Vanessa.

A última parada estava programada para ocorrer no bairro de Pirajá, mas enquanto estava a caminho da Unidade de Pronto Atendimento de Pirajá/Santo Inácio, a reportagem foi abordada por pacientes que relataram uma série de descasos nas duas principais unidades de saúde que atendem ao bairro de Tancredo Neves: o Pronto Atendimento Dr. Rodrigo Argolo e o 6º Centro de Saúde.

Por lá, a situação é crítica até mesmo para aqueles que necessitam de atenção especial. "No [6º Centro de Saúde], não tem pediatra há anos. Meu filho autista está sem acompanhamento, e quando questionei a funcionária, ela me disse que a médica se cansou de atender crianças, por isso não há mais pediatria", denuncia a dona de casa Ranuza Tavares, desempregada há anos para cuidar do filho.

O cenário de descaso é reforçado por Ranuza, que já presenciou médicos usando o celular enquanto pacientes sofriam de dor nos corredores. "Aqui, o paciente tem hora pra chegar, mas não tem hora pra sair", desabafa.

Cenário preocupante

Para o neuropsicólogo e mestre em avaliação psicológica, Damião Silva, a situação encontrada em Tancredo Neves é preocupante. Segundo ele, a falta de acompanhamento especializado para crianças autistas pode causar danos e prejuízos consideráveis. “O desenvolvimento cognitivo da criança é afetado, a aprendizagem dela também é comprometida e até mesmo a saúde mental pode ser prejudicada”, alerta

Ainda segundo o profissional, toda e qualquer pessoa com autismo precisa ser acompanhada de perto por uma equipe multidisciplinar. “É importante que as autoridades compreendam o impacto do autismo na vida das pessoas e forneçam um acompanhamento de excelência, inclusive com terapias clínicas e com que mais seja necessário para um desenvolvimento saudável da criança ou adolescente”, finaliza.

Dever é dos municípios

Para René Viana, advogado especializado em Direito Médico e presidente da Comissão Especial de Direito Médico e da Saúde da OAB/BA, a solução para os problemas na saúde pública passa por ações intersetoriais que envolvem não apenas a área da saúde, mas também educação, habitação, saneamento e emprego. "Tudo isso se combina com os serviços básicos de saúde e são fundamentais para promover a qualidade de vida", explica.

Ele reforça, ainda, que é responsabilidade dos municípios promover um conjunto de ações que envolvam promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e cuidados paliativos, “integrando práticas de cuidado para garantir uma assistência de saúde eficaz e digna para a população”, completa.

Sem respostas

O Farol da Bahia buscou ouvir a Prefeitura de Salvador através da Secretaria Municipal de Saúde. Foram questionadas a falta de médicos e medicamentos, longas filas e todas as demais reclamações trazidas aqui. A pasta, no entanto, não se pronunciou até o fechamento desta reportagem.
 

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