Obra de 1º quadrinista negro a vencer Pulitzer chega ao Brasil quando ele é preso
Quadrinista é suspeito pela posse de dezenas de imagens de pornografia infantil, algumas geradas por IA
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Foto: Divulgação
Quando era criança, Darrin Bell não sabia como lidar com cachorros. Seus amigos se agachavam e ofereciam as palmas das mãos para os animais, tentando mostrar que eram inofensivos, mas Bell ficava paralisado do medo.
Bell, 49, usa o episódio como uma espécie de mito fundador na sua HQ autobiográfica "A Conversa". O quadrinista, premiado com um Pulitzer por suas charges, sugere que foi ali que ele aprendeu a lidar com ameaças.
A obra, de 2023, saiu no Brasil no momento em que o quadrinista foi detido nos Estados Unidos, suspeito pela posse de dezenas de imagens de pornografia infantil, algumas geradas por inteligência artificial (IA).
Bell, sob a custódia da polícia desde o último dia 16, ainda não se pronunciou sobre as investigações nem se defendeu das suspeitas, e não há mais detalhes sobre o caso até este momento. A Folha tinha uma entrevista agendada com ele para o dia de sua prisão.
Esta é a primeira vez em que as autoridades do condado de Sacramento, na Califórnia, acusam alguém por posse de pornografia infantil gerada por computador, segundo reportagem do jornal americano New York Times.
O episódio pode destruir uma carreira que era, até aqui, de ascensão. Bell era respeitado tanto no meio dos artistas quanto entre ativistas de justiça racial, que contavam com as charges que ele publicava em alguns dos principais jornais americanos para denunciar o racismo.
Sua obra se soma a de diversos outros artistas que retratam suas experiências enquanto afro-americanos, um gênero em crescente ascensão outro destaque é a HQ "Incognegro", de Mat Johnson e Warren Pleece, publicada no Brasil em 2021 pela Veneta.
Uma das principais contribuições de Bell, nesse contexto, foi trabalhar a intersecção entre o racismo e outras práticas discriminatórias, como a xenofobia e a misoginia. Ele era um aliado de outros grupos.
Isso aparece de maneira explícita em "A Conversa", por exemplo quando Bell narra os seus primeiros contatos com a comunidade LGBTQIA+ e compara a discriminação contra os negros com aquela sofrida pelos homossexuais.
A graphic novel funciona como uma espécie de romance de formação ilustrado, com um arco narrativo que mostra como o racismo moldou a vida e a carreira de Bell. São capítulos curtos, em que o leitor acompanha o crescimento do quadrinista na costa oeste americana e suas lições antirracistas.
A imagem dos cachorros acompanha o autor, por exemplo, quando ele é abordado por policiais. Bell mostra como foi aprendendo a "mostrar as mãos", no sentido de convencer as autoridades americanas - todos os dias - de que não representava uma ameaça. Uma performance de bom cidadão.
Ele conta que foi só assim que entendeu porque sua mãe não deixava que brincasse com arminhas de brinquedo. Crianças brancas podiam fazê-lo, percebeu. Crianças negras, porém, seriam confundidas com criminosos.
Foi só na vida adulta, já trabalhando como quadrinista, que ele foi se dando conta de que não deveria mostrar as mãos. É o que por fim ensina para seu filho, sugerindo que é necessário se posicionar contra os cães.
Os animais, no livro, representam não apenas o racismo de maneira abstrata como também a polícia e a sua violência. É uma polícia, sugere Bell, capaz de atirar em uma criança que tem apenas uma arma de brinquedo.
Bell registra diversos momentos da história americana na HQ, incluindo o assassinato do homem negro George Floyd por um policial em 2020, o que deflagrou os protestos Black Lives Matter.
A linha do tempo que ele constrói sugere que pouco melhorou com a troca de presidentes nas últimas décadas. Bell retrata a eleição de Donald Trump em 2016 como um sinal da piora das relações sociais nos EUA.
Foram as charges sobre Trump, em particular, que lhe deram o Pulitzer em 2019, solidificando sua carreira - que, no contexto das investigações de pornografia infantil, entra agora em uma trajetória descendente.
Já no anúncio da prisão de Bell, o jornal Washington Post anunciou que deixaria de publicar as ilustrações em suas páginas de quadrinhos. Outros meios devem tomar ações semelhantes até a resolução do caso.
A CONVERSA
- Preço R$ 99,90 (352 págs.), R$ 49,90(ebook)
- Autoria Darrin Bell
- Editora Amarcord
- Tradução Floresta