A musicalidade do Terreiro: do diálogo com a ancestralidade, ao discurso denunciador do racismo em busca de emancipação
Além do merindinlogun - o oráculo de 16 búzios, que é uma das formas que temos de nos comunicar com os Orixás, a música, também se apresenta como um importante meio de comunicação entre o Ayê (terra) e o Orun (céu). O canto intercalado com o toque e a dança, também faz parte desta conversação com os deuses. Esta tríade que converge de forma harmônica, onde as letras das canções estão em confluência com os atabaques e a dança, e que através das variações instrumentais e os gestos elaborados com os ombros e as mãos, fazem com que este diálogo aconteça.
Conhecidos como “chamadores de Orixás”, os Alabês, são os instrumentistas sacerdotes que têm como finalidade invocar os Orixás através das suasvariações rítmicas, que são elaboradas no atabaque de maior porte, popularmente chamado de “Rum”(nação Jêje) – Iyá Ilú (nação Ketu). Consideradosdivindades, os atabaques também passam por sacralizações, e por este motivo nem todo mundo pode tocar. Esta orquestra que é formada por quatro integrantes, aonde três atabaques e um agogô -espécie de sino com som metálico, agudo e estridente, que é o responsável pela sintonia da orquestra, conduz a composição da obra. Muitas vezes esta orquestra tem uma quinta pessoa, ondetodo o compasso é preenchido através de um instrumento chamado xequerê - cabaça revestida demiçangas, que faz alusão as palmas.
Dentro da tradicionalidade, mulher não pode tocar,não obstante, quando o corpo sacerdotal não se faz por completo (isso são as adaptações perante a necessidade da situação). Contudo, não são todas as mulheres que podem ter esse privilégio. Normalmente são as anciãs e com vastaexperiência. Algumas destas senhoras são tão bem afinadas, que, com solfejos, conseguem conduziraquele Alabê em fase de aprendizado, sem precisar transgredir a tradição, ou seja, elas muitas vezes nem precisam tocar nos instrumentos para fazer a magia acontecer. As mulheres têm importância fundamental na condução da orquestra, pois além de cantarem, elas dialogam em forma de gestos com a música em exercício. Os antigos diziam que a boa dança é aquela executada com os ombros, onde o Alabê tem a obrigação de estar atento a todos os passos de quem dança.
Durante alguns anos aqui no Opô Afonja, aconteciaum evento musical e internacional, idealizado por Cléo Martins, filha de Iansã, e Roberval Marinho, filho de Ogun. O evento chamado de Alayandê Xirê, que significa: A festa do grande tocador reunia os instrumentistas das três nações de todo o Brasil: Alabê, nação Keto; Xicarangoma, Angola; e Runtó, Jêje. Esse encontro de ritmos também contou com a presença de músicos norte-americanos e sacerdotes da Santeria cubana, onde teve como diretor musicaldeste grandioso colóquio, meu querido “irmão de cabeça”, o Maestro baiano Fred Dantas. A percussionista Déia Azevedo, minha irmã de sangue, também participou como diretora de percussão. Tempos dourados do Opô Afonjá!
Diferente das nações Angola e Jêje, a nação Ketotem uma variedade de ritmos que são explorados por músicos de diversos gêneros musicais, hajavista sua versatilidade. Com isso não estou dizendo que as outras nações não sejam também exploradas, mas a multifuncionalidade das claves rítmicas da nação Keto, são bem mais adaptáveis ao que ouvimos fora dos Terreiros. Desde a Bossa Nova ao Funk, podemos ouvir células rítmicas oriundas dos Terreiros de Candomblé. O Maestro, educador e arranjador Letieres Leite, in memoriam,1959-2021, dizia que quando ouvido com atenção, desde o violão de João Gilberto até o pagodão, podemos identificar trechos melódicos que têm como base os ritmos matriciais.
No final do século XIX, onde os negros eram proibidos de saírem às ruas para brincarem o carnaval, grandes movimentos oriundos dos Terreiros de Candomblé começaram a se formar. O Afoxé foi o primeiro movimento desta segmentação carnavalesca a se mobilizar contra o regime ditatorial, que mesmo com a truculência da polícia,“pândegos”, “troças” e “patuscadas” se reuniam para lutarem pelo direito de também saírem na rua. Anos mais tarde, já no século XX, em 1974 surge o Ilê Aiyê, um bloco Afro, onde através da música se denunciava as práticas racistas da sociedade, e a partir deste discurso político começaram a surgir outras grandes agremiações como Olodum, Malê de Balê, Afoxé Badauê, Muzenza, Ara Keto, Bankoma, Cortejo Afro e etc, todos com o mesmo propósito; o grito de libertação!
Por ser classificada de domínio popular, a música dos Terreiros estão cada vez mais em evidência da “porteira pra fora”, onde podemos ouvir grandes artistas da atualidade fazerem uso destas célulasrítmicas e até mesmo das letras de algumas cantigas utilizadas no âmbito sagrado, de modo que todo este movimento ainda caminha rumo ao aniquilamento deste grande estigma que foi a escravidão. Em 1988, o cantor e compositor Tatau, ex-cantor da banda Ara Keto, em parceria com Paulo Moçambique compuseram uma canção para o Olodum – Protesto do Olodum, onde retratava a realidade do Pelourinho naquela época, mas que ainda hoje seguimos cantando, protestando e denunciando todo o mal que ainda perdura contra o povo negro. E tudo isso através da música de Terreiro.
O santo-amarense Caetano Veloso na canção 13 de maio diz o seguinte:
“No dia 13 de maio em Santo Amaro.
Na Praça do Mercado.
Os pretos celebravam.
Talvez hoje ainda o façam.
O fim da escravidão... O fim da escravidão (...)”
Este manifesto realizado em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, completou 134anos neste ano de 2023, em 13 de maio. Considerado o maior Candomblé feito fora dos portões dos Terreiros, esta manifestação é mais uma prova da resistência do povo negro. O pomposo Bembé do Mercado é uma festa religiosa afro-brasileira que acontece nas ruas da Cidade de Santo Amaro, onde a música Ancestral faz parte de toda estrutura do manifesto. Em 2019, o Bembé foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC, como Patrimônio Cultural Nacional e Patrimônio Imaterial da Bahia. E além dos festejos religiosos, outras manifestações como o Samba de Roda e a Capoeira se misturam a este grande encontro de todas as nações do Candomblé.
Dedico este artigo aos Alabês Mestres do OpôAfonjá in memoriam: Nezinho e Darinho, ambos do Orixá Omolú. Registro também os meus respeitospara aqueles que ainda continuam aquecendo a tradição, a exemplo dos Alabês: Gerson Costa, Alayandê - “o garoto Bié” e Roberval Raimundo, Alayandi – mas conhecido por Rubinho. Ambos confirmados por Mãe Stella.
Rendo esta homenagem também aos Xicarangomase Runtós, que dentro das suas liturgias também são considerados “chamadores de Inkises e Voduns”. E ao Grupo de Samba de Terreiro, Inúdidùn – Samba da Felicidade, que tem como objetivo levar contentamento a todos àqueles que apreciam um bom Samba, deixo também a minha singela homenagem.
Ilú ô!