Algumas práticas do Candomblé ainda são tratadas com discriminação, ao ponto de agredirem perversamente as nossas memórias. Essa intolerância é tão atrevida que foi necessário que os povos de matriz africana entrassem na justiça para terem de volta o direito em poder realizar suas práticas ancestrais, onde o sacrifício animal foi à bola da vez.
A sessão aconteceu no Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, em 2019, onde o julgamento final entendeu que o sacrifício de animais nos rituais não se enquadrava em maus tratos. Mas para se chegar ao veredicto, foi necessário o pronunciamento categórico, crucial e contundente do Doutor Hédio Silva Júnior, onde destacou alguns aspectos que estavam a juízo da matéria, e que de forma irônica desmantelou as narrativas dos narradores, onde a partir de sua observância, viu que os sapatos daqueles que discursavam em defesa dos animais, não condizia com as suas declarações, haja vista sua matéria-prima, o couro. E para além da hipocrisia, o racismo religioso se fazia mais uma vez evidente. Dr. Hédio enfatizou também sobre os assassinatos de jovens negros, que diariamente são mortos como animais, e que não há nenhuma comoção da sociedade. Mas, a galinha do Candomblé tem mais importância que a vida do jovem preto da periferia.
A palavra sacrifício pode ser interpretada a partir das mais diversas perspectivas, onde tirar a folha do mato até o acordar cedo para fazer as atividades diárias do Terreiro, são considerados atos sacrificais. Lembram do texto sobre o sincretismo, onde falo sobre o aprendizado do neófito e das suas privações e renuncias? Pois bem... Deixar de comer alguma coisa que gosta pelo simples fato de fazer mal fisicamente, ou até mesmo sem que nenhum mal faça ao corpo físico, a proibição (ẹwọ) de determinada coisa que se faz inerente a caminhada espiritual daquela pessoa, onde abdicar ou renunciar daquilo que gosta para ser obediente ao que lhe foi determinado, também é chamado de sacrifício!
Hoje, existe um estilo de vida, onde as pessoas de forma voluntária estão excluindo de suas práticas diárias a exploração de produtos de origem animal, estejam eles na forma de alimento, vestuário, cosméticos e etc. Vale lembrar, que esta filosofia de vida começou no Reino Unido há mais de sete décadas. Porém, como tudo no Brasil vira moda, há quem queira até fazer do Candomblé vegano. E isso é mais um problema que o Candomblé tem que enfrentar. Mas não vamos nos ater a este assunto, pois o veganismo no Candomblé é um papo chato e sem cabimento, e que acabo a conversa com uma única palavra: TRADIÇÃO.
O pobre periférico não tem como sustentar um estilo de vida, onde muitas vezes se traveste da hipocrisia, como disse Dr. Hédio. Os Terreiros de Candomblé são locais de acolhimento, onde pessoas de todos os tipos buscam a melhoria. Porém, muitas vezes esta procura é por motivos sociais que seria obrigação do Estado fazer, mas, que por algum motivo este poder não supre a necessidade de quem mais necessita. Digo isso por que aqui no Opô Afonjá já ouvir relatos de pessoas dizerem que só vem nas festas por que sabe que tem comida. E o sacrifício dos animais serve para alimentar o “estilo de vida” de quem há anos viveu a base de feijão, arroz e carne.
Exceto aqueles que descriminam o Candomblé, pois estes já carregam consigo o sentimento hostil de forma intrínseca, os outros, que nos enxergam como algo lúdico, onde a beleza que pode ser vista pelo não iniciado encanta, não tem noção do quanto o Candomblé é coisa séria, e, exige muitos sacrifícios. O compromisso firmado, onde conciliar o trabalho assalariado com o trabalho do Terreiro requer amor ao sagrado e dedicação. Passaria um dia inteiro falando sobre esta palavra simbólica que abrange muitas relações com espiritual, sem que seja desfigurada quando somente associam ao sacrifício animal, mas, que ainda, é algo que fazemos com nobreza, preservando a dignidade do animal, até por que, muitas famílias se alimentam destas oferendas.
Então... Todo esforço, empenho e trabalho exercido dentro e fora dos Terreiros, é o nosso sacrifício de cada dia, para que tenhamos o brio de poder viver neste mundo tão sombrio!