A partir do conhecimento empírico, trago para vocês leitores um equívoco etimológico no âmbito gastronômico, e que gostaria de compartilhar como vocês ante a minha vivência dentro de um Terreiro de Candomblé. Além disto, existe um grande desconforto do povo de Axé, que parte da apropriação indevida, combinada com a falta de respeito com a nossa tradição, costumes e crenças. Akará, traduzido do ioruba para o português significa PÃO. Desde os primórdios, a matéria prima da massa deste pão é o feijão fradinho. Este grão depois de amolecido em água e tirado a casca, era moído de maneira artesanal em pilão de pedra. Temperada com cebola ralada e sal, a massa era batida com a colher de pau até dar o ponto de ser “assada”. Moldados em forma de bolinhos, este pão era colocado em azeite de dendê fervente, até dourarem por fora e cozerem por dentro.
O pão que me refiro é o nosso acarajé de todo dia. Mas porque usei o termo “assado” ao invés de frito? Vamos lá... Em África, em tempos antigos não existia forno, e este “pão” era frito no dendê. Aqui no bairro do São Gonçalo do Retiro, remanescente do Quilombo do Cabula, tinha uma senhora filha do Orixá Ogun, que morava na Baixa de Santo Antônio, a famosa Baixinha. O nome dela era Constância. Ela tinha um tabuleiro na entrada do São Gonçalo, onde vendia este quitute desejado por muita gente. Ainda com fogareiro de carvão, dona Constância tinha clientela certa e fiel, que muitas vezes fazia-se fila para apreciarem tal iguaria.
Por muitas vezes ouvir dona Constância dizer: “Meu filho... Espere só um pouquinho... O acarajé ainda está assando!” Mais porque assando e não fritando? Teoricamente o acarajé é frito e o pão da padaria assado. Então porque com o nosso akará seria diferente?! Observem que a liga da massa do acarajé é batida ao ponto de neve, que por dentro cozinha sem que o acarajé fique encharcado de dendê, deixando-o com aquela casquinha crocante por fora, e macio por dentro. E foi partir da eloqüência de dona Constância que pude observar que a nossa “língua brasileira”, mas particularmente a falada aqui na Bahia, onde muitas palavras que fazem parte do nosso léxico, mas que nós não nos damos conta de sua origem, a palavra acarajé é a corruptela do substantivo akará (pão), com o verbo jé, que significa comer. Sendo assim, akará n’jẹ (acará unjé – comer pão) se abrasileirou, mas que equivocadamente é chamado de “bola de fogo”, o que não tem nada a ver, pois traduzido do ioruba para o português, bola é bọọlu e fogo, inã. Acredito que pelo seu formato, e, o Orixá ao qual é ofertado tal iguaria (Iansã), e que também tem relação com o fogo, talvez ele seja chamado assim. Mas, ao ponto de vista da fonética, “comer pão” se tornou Acarajé.
Aproveitarei o espaço para fazer mais uma analogia de palavras oriundas das línguas africanas, mas precisamente do ioruba. E mesmo que fora do tema supracitado, é só para vocês compreenderem o quanto a cultura africana está imiscuída em nosso dia a dia. Pois bem... Sabem quando uma pessoa tem birra da outra, e diz: “Aff... Fulano é o Ó?!” Esta corruptela provém do substantivo tabu/proibição. Lembram do artigo sobre o sincretismo onde falo que: “(...) conviver com restrições, que muitas vezes são aprovações de vida, pois nem tudo o que gosto e quero, é tudo o que eu posso.” Então... No Candomblé temos tabus, temos EWÓ, que popularmente é chamada de QUIZILA, termo da língua quimbundo falado dentro dos Terreiros de nação Angola. Então a palavra “ẹwọ” foi modificada e adaptada em nosso vocabulário baianês. Estas proibições no âmbito religioso fazem parte do processo de iniciação e de purificação do neófito, onde estes ewós se levam pra toda vida.
Mas voltando ao tema, além do equivoco da palavra acarajé ser confundido por bola de fogo, o que é irrelevante, algo mais preocupante afligi o povo de Terreiro e as tradicionais baianas de acarajé, que mesmo ainda que algumas não sigam a religião do Candomblé, elas se trajam rigorosamente seguindo a tradição, colocando os torços em suas cabeças (ojás), saias de rechiliê, batás e as guias no pescoço (contas dos Orixás), representação autêntica de uma baiana de acarajé. A apropriação indevida da cultura do acarajé, feita por pessoas procedentes das igrejas evangélicas, é uma afronta desrespeitosa a nossa tradição.
Com isso, não estou dizendo que a cristã mãe de família não possa tirar o seu sustento vendendo o acarajé. Mas isso me soa muito estranho! Uma religião que é demonizada a todo instante, é até contraditório fazerem uso do que é nosso. Retificando: fazerem “uso das vestes de satanás” – declaração de uma cristã vendedora de acarajé, no documentário “Akará – No fogo da intolerância”. E para além do paradoxo, modificar os letreiros de seus toldos para “bolinho de Jesus”; “acara-crente”; “acarajé 100% adventista” etc, é uma ofensa aos nossos Ancestrais, que tiveram que fundir sua religião com a do branco opressor para perpetuarem sua fé. Vocês sabiam que até Capoeira gospel existe? É só da um Google que vocês acham. Pois é. Isso é um ultraje... Chega ser imoral! Há tempos atrás fiz uma brincadeira que não iria demorar muito a criarem um Afoxé gospel. Mas pra minha não surpresa, recentemente, pós-carnaval, vir em alguns sites de notícias que a prefeitura de Salvador está articulando criar um circuito no carnaval para foliões evangélicos. É mole ou querem mais? Seria até cômico, se não fosse preocupante.
Pois bem... Mesmo que eles modifiquem a nomenclatura do acarajé, este alimento permanecerá sendo do Candomblé, e por isso não tem o que se discutir. Acarajé é uma comida utilizada dentro da liturgia do Candomblé; é o prato preferido do Orixá IANSÃ; foi tombado pelo Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e é de onde mulheres pretas oriundas dos Terreiros tiram o seu sustento, e que ainda sofrem os mais diversos tipos de intolerância e racismo religioso por fazerem uso das insígnias que traça a religião que eles tanto demonizam, mas que indignamente se aproveitam pra angariarem lucro. A meu ver, Jesus come pão de trigo e centeio, regado a vinho, então nada mais digno que abram uma padaria. Eu compraria pão sem nenhum problema! Mas, comprar Acarajé na mão de evangélico é uma ofensa a minha moral.
Iansã come Acarajé, abará, caruru, vatapá e bebe aluá, portanto, Acarajé é o pão dos Orixás!!!
Dedico este artigo a todas as mulheres de Oyá (Iansã) e todas as legítimas Baianas de Acarajé.