Caruru: mais uma herança do povo preto

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Caruru: mais uma herança do povo preto

Ao iniciar o mês de setembro, nós, baianos, começamos os preparativos para nos refestelarmos com as comidas de dendê. A Bahia, terra de magias e encantos, onde o enorme e relevante legado deixado pelos povos oriundos de África se mistura à essência da nossa baianidade, faz com que sejamos parte desta África ancestral. Em 26 de setembro – data oficial da celebração a São Cosme e São Damião, os baianos devotos dos Santos gêmeos costumam fazer o famoso “Caruru de Cosme e Damião”. Já em 27 de setembro, alguns Terreiros de Candomblé fazem o popular “Caruru de sete meninos”, no entanto, desde o dia 1° a Bahia começa a ficar perfumada de dendê, período em que muita gente fica na expectativa de possíveis convites [risos].

Médicos de profissão, os irmãos Cosme e Damião viveram na Ásia Menor – Síria, entre os séculos III e IV. Além da habilidade como médicos quando proporcionavam saúde do corpo físico aos seus consulentes, eles também faziam o uso da oração e da fé cristã como caminho de cura d’alma. Diante disto, naquele período da história, eles foram perseguidos, presos e acusados de feitiçaria, sendo posteriormente mortos e decapitados. Reconhecidos como Santos, até hoje os irmãos são padroeiros dos médicos, farmacêuticos e das crianças.

Sincretizados com o Orixá Ibeji (Ibi = nascido / eji = dois), sendo “gêmeo” o significado literal de Ibeji,os festejos de São Cosme e Damião seguem no formato dos Terreiros de Candomblé, onde um abundante “Caruru” é ofertado. Mas quando nos referimos ao caruru, não é somente o caruru – quiabo cortado e refogado com camarão, cebola e dendê. Este Caruru se completa com outros quitutes originários da culinária de Terreiro, tendo em cada um deles a representação dos Orixás pois, além do caruru, temos: vatapá; feijão fradinho; feijão preto; milho branco; pipoca; rapadura; cana-de-açúcar; farofa de dendê; arroz branco; banana da terra; inhame; galinha de xinxim; abará e acarajé. Tudo regado com azeite de dendê, salvo a pipoca, milho branco, arroz, inhame e cana.

Em terras iorubanas as crianças nascidas gêmeas têm nomes específicos – tema pra um próximo artigo. Essa herança também chegou à diáspora, onde os gêmeos são batizados como: Tawiô e Kehindê (explicarei o significado de seus nomes posteriormente). A partir desta perspectiva, os gêmeos nascidos no mês de setembro – pelo menos aqueles que compreendem a história ou que são devotos dos Santos e/ou Orixá, sempre oferecem o famoso Caruru. Perante a fé, esta oferta é vista como uma grande oferenda: seja ela para Ibeji ou Cosme e Damião, independentemente da circunstância do nascimento, o que muitas vezes também se dá por promessas e graças alcançadas.

Existe um itan que ilustra o porquê os Ibeji também comem Amalá – Caruru. O Amalá é a comida preferida de Xangô, porém, ele é servido quente e com bastante pimenta. Exu, bom de boca que era, roubava a comida de Xangô deixando-o bravo, o que resultava em raios e trovões mesmo em dias de sol. Vendo a travessura de Exu, osIbeji resolveram ajudar seu pai, Xangô. Um deles propôs a Exu um desafio de dança, onde quem parasse de dançar primeiro perdia, sendo que, se Exu perdesse, deixaria de roubar a comida de seu pai. Exu intitulado o “rei da dança”, deu uma gargalhada e aceitou o desafio. Sem saber que o desafiante tinha um irmão gêmeo, quando o primeiro cansava de dançar, trocava com o outro sem que Exu percebesse. Depois de horas dançando, Exu caiu exausto, perdendo a aposta, deixando, então, de surrupiar o Amalá de Xangô. Aí, como recompensa, osIbeji pediram que o Amalá também fosse servido para eles, porém, sem pimenta.

O Caruru é uma comida afetiva, onde a partilha do alimento nos dá a sensação de fraternidade. Muita gente opta em distribuir quentinhas pela cidade para pessoas em situação de rua. Outras pessoas ainda permanecem com a tradição dos “sete meninos”, que são convidados a comerem num enorme prato de barro – chamado alguidá. A comida é servida e os meninos sentados no chão, em volta do prato, comem simultaneamente. Tudo isso à base de cânticos. Este grande ebó objetiva ofertar afeto em troca de saúde, prosperidade e fartura.No entanto, esta tradição vem caindo no esquecimento: infelizmente o racismo e a intolerância religiosa tentam,a todo custo, apagar nossas memórias.

No dia 4 de dezembro, dia de Santa Bárbara, o Caruru também faz parte do banquete, sendo que o Acarajé é o carro-chefe, haja vista o sincretismo com Iansã. É visível a influência do povo preto nas manifestações populares da Bahia. No Terreiro, sempre comemos, bebemos e cantamos, e toda esta maneira de cultivar a fé se estendeu às mais diversas formas de expressão: seja em Cosme e Damião, ou em Ibeji, ressaltando que, inevitavelmente, todas essas manifestações são regadas com o bom dendê, cheio de Axé. 

Salvem osIbeji;
Salvem Cosme e Damião;
Salvem as nossas crianças!

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