Ao compulsar os comentários sobre o futuro governo de Javier Milei na Argentina, independente da corrente política que se manifesta, um problema recorrente logo aparece: o problema da governabilidade. Ou talvez, melhor dizendo, o falso problema da governabilidade.
Milei governará a Argentina imersa em crise profunda. Para colmatar os embaraços em que o país se envolveu, oferece um receituário desconhecido na América Latina, que chama de libertário. Consiste, em suma, em virar pelo avesso o desastre econômico e social que o peronismo, dominante por décadas a fio, conduziu o país.
Milei não tem, todavia, maioria parlamentar no novíssimo regime democrático da Argentina. Aí reside o problema da governabilidade, típico das democracias representativas. Que fazer, então?
Muitos acreditam que a regra da maioria é um pressuposto da Democracia, que a decisão majoritária é a melhor forma de auferir a vontade popular. Vale dizer, a maioria sempre tem razão!
Não é o que pensa o conceituado jusfilósofo italiano Norberto Bobbio, em seu livro intitulado O Futuro da Democracia. Para ele, a regra da maioria exprime o sujeito coletivo do poder político, neste caso o Parlamento, cingindo-se, deste modo, aos aspectos quantitativos da decisão, negligenciando a musculatura política do corpo eleitoral, na qual, em última análise, se sustentam as políticas públicas propostas, essas, sim, representativas dos aspectos qualitativos do governo nacional.
A derrocada do peronismo não foi, ao que parece, uma mera alternância de Poder na República Argentina. Representou uma rebelião do corpo eleitoral, uma recusa do povo a um modelo de governo ultrapassado, no qual o Estado substituiu a Nação e converteu os argentinos em ventríloquos de sua linguagem dominante. Os argentinos decidiram experimentar outra rota, ainda que para isso se mostrem dispostos a sacrifícios, capazes de revalorizar o indivíduo, inaugurar um novo modo de vida e ressignificar valores perdidos.
A regra da maioria não é tão absoluta como parece ser, enquanto for tão somente uma soma das cadeiras partidárias e parlamentares, insusceptíveis dos clamores populares, tão bem expressos na folgada maioria de votos que consagrou a eleição de uma nova e fulgurante figura, até então pouco conhecida no cenário eleitoral da nação. A Argentina assimilou um discurso político, consistente e claro, cujos simbolismos da motoserra e dos leões entraram definitivamente na corrente sanguínea da nação argentina.
A partir desta visão de Bobbio, o exercício do Poder não significa exercê-lo através de uma maioria inflexível e permanente, mas também através de maiorias móveis, nascidas do debate público e da influência da opinião pública, cada vez mais esclarecida das ideias sedimentadas na campanha eleitoral.
No afã de aprofundar mais ainda o problema, Norberto Bobbio, que estudou em profundidade a Democracia liberal, seus êxitos e dificuldades, alinhou os limites em que a regra da maioria enfrenta dificuldades severas, quanto a sua validade, aplicação e eficácia.
Portanto, não é um bicho de sete cabeças governar sem uma maioria parlamentar qualificada, ainda mais porque Milei chega ao Poder com amplo apoio popular e sua proposta implica a substituição radical de um método de governo que aluiu os mecanismos do Estado argentino, chefiado por uma elite corrupta, destituída de valores morais, tangida pelo povo argentino como um cão sem dono.
O falso dilema da governabilidade é vocalizado com ênfase, tanto por analistas de direita, quanto pelas carpideiras de esquerda, embaladas pelo desejo de ver o circo pegar fogo, com o fracasso de Javier Milei.
Governos procuram incessantemente o abrigo da regra majoritária, ainda que ela não seja absoluta ou imprescindível à Democracia, todavia é possível levar a bom termo um programa governamental estribado em amplo apoio popular e num sistema azeitado de negociações.