Gastos públicos para tratar problemas de saúde decorrentes do álcool atingem R$ 1,1 bi por ano
Os homens respondem por 74% dessas despesas

Foto: Arquivo/Marcelo Camargo/Agência Brasil
Aos 56 anos, Paulo trata um câncer de esôfago em um hospital filantrópico de São Paulo. A doença veio se a somar a pelo menos outros dois danos associados ao uso abusivo de bebidas alcoólicas ao longo de 25 anos: um grave acidente de moto que o deixou com sequelas motoras e uma briga de bar em que fraturou a mandíbula.
Há um ano e meio, por insistência da família, ele passou a frequentar um grupo do AA (Alcoólicos Anônimos) e se mantém abstêmio desde então. "Só agora me dou conta das besteiras que já fiz na vida por causa de bebedeira", diz ele.
Os gastos diretos com hospitalizações e procedimentos ambulatoriais para tratar problemas de saúde relacionados ao uso do álcool custam ao SUS (Sistema Único de Saúde) R$ 1,1 bilhão por ano, segundo estudo da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). Os homens respondem por 74% dessas despesas. Entram nessa conta doenças do fígado, do pâncreas e cardiovasculares, além de diversos tipos de câncer, transtornos mentais, acidentes de trânsito e violências interpessoais, entre outros.
Os chamados gastos indiretos, como perda de produtividade (absenteísmo e mortes prematuras), licenças médicas e aposentadorias precoces, acrescem mais R$ 17,7 bilhões na fatura atribuída às bebidas alcoólicas.
Paulo, por exemplo, não faz ideia das vezes em que, com ressaca incapacitante, deixou de trabalhar ou teve desempenho muito pior em relação aos dias em que não bebeu. Cobrador de ônibus em São Paulo, hoje está afastado do trabalho para tratar o câncer.
O total de gastos diretos e indiretos (R$ 18,8 bilhões) do país com os malefícios das bebidas alcoólicas representou 8,6% do orçamento total da saúde de 2024 e 61,6% do valor que o governo pretende investir até 2026 em ampliação do atendimento no SUS.
A metodologia do estudo da Fiocruz, feito em parceria com as organizações Vital Strategies e ACT Promoção da Saúde, usa uma análise comparativa de risco baseada em dados oficiais do SUS e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), além de estimativas de mortes atribuíveis da OMS (Organização Mundial da Saúde).
As frações atribuíveis ao álcool foram calculadas para doenças e mortes associadas ao consumo de bebidas alcoólicas, considerando a prevalência de uso por sexo e faixa etária.
Em 2019, quase 105 mil mortes no Brasil foram associadas ao consumo de álcool. A maioria (86%) é de homens, e as principais causas são doenças cardiovasculares, acidentes e violências, mostra o estudo.
Entre as mulheres, mais de 60% dos óbitos relacionados ao álcool foram causados por doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer.
Segundo Pedro de Paula, diretor da Vital Strategies no Brasil, o estudo adotou uma abordagem conservadora, já que é baseado exclusivamente em dados oficiais de fontes públicas, e em nível federal. Não foram considerados custeios por estados e municípios e da rede privada de saúde.
Ele explica que os gastos indiretos são muito maiores em comparação aos diretos porque o álcool inabilita as pessoas ao mercado de trabalho de forma eventual ou permanente e mata precocemente, o que causa impacto direto na economia do país.
Eduardo Nilson, pesquisador da Fiocruz e responsável pelo estudo, afirma que a mortalidade prematura é uma das principais causas de perda de produtividade. "São pessoas que saem precocemente do mercado de trabalho, com todo potencial de vida que eles teriam de geração de riqueza", diz.
Também integram os gastos indiretos os custos do absenteísmo e dos afastamentos do trabalho pagos pelo INSS. A Covitel 2023 (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia) mostrou que 900 mil brasileiros deixam de trabalhar ou tem o rendimento prejudicado uma vez por semana devido ao consumo de álcool.
Há quase duas décadas, de 2006 a 2023, o percentual de adultos nas capitais brasileiras que ingerem bebida alcoólica em pelo menos um dia da semana se manteve acima de 25%, mostram dados do Observatório da Atenção Primária à Saúde, da Umane, que apoia iniciativas no âmbito da saúde pública.
Entre as mulheres, porém, o consumo abusivo de álcool vem aumentando. Dados do Vigitel, inquérito telefônico do Ministério da Saúde, mostram que a ocorrência desses episódios (quatro ou mais drinques em uma mesma ocasião) quase dobrou entre as mulheres entre 2006 e 2023.
A mesma tendência de aumento é apontada pela Pense (Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar) de 2019: 67% das meninas já tinham experimentado álcool antes dos 17 anos, contra 60% dos meninos. "É um mercado visado pela indústria do álcool, mas que vai ser um mercado de mais morte e morbidade também", diz Pedro de Paula, da Vital.
O consumo de álcool, mesmo que moderado, tornou-se um dos principais fatores de risco para o câncer de mama, segundo a OMS. Entre as mulheres europeias, o tumor já é o principal causado pelas bebidas alcoólicas, representando 66% de todos os casos de câncer atribuídos a elas.
O Brasil assumiu um compromisso dentro dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), das Nações Unidas, de reduzir o consumo de álcool em 10% até 2030. Depois, fez um adendo elevando essa meta para 20%.
Mas, para os pesquisadores, no atual ritmo, dificilmente o país atingirá esse objetivo. "As políticas nacionais para o álcool são da década de 1990 e só existem no papel, nunca foram implantadas de fato", afirma a psiquiatra Ana Cecília Marques, membro do conselho consultivo da Abead (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas).
Ela diz que o país corre o risco de perder os ganhos obtidos pela Lei Seca, que estabeleceu o limite zero para o consumo de álcool pelos motoristas. "O Brasil sempre teve índices de cerca de 35% de motoristas embriagados. Quando as blitze eram frequentes, essa taxa caiu bastante. Agora, sem fiscalização, já voltou ao que era antes."
A OMS identificou um conjunto de estratégias de intervenção acessíveis, viáveis e econômicas para reduzir os danos do álcool e sua contribuição para a carga geral de doenças e apoia a priorização das chamadas "best buys" de políticas de álcool.
São elas: aumento dos impostos especiais de consumo de bebidas alcoólicas; restrição ao acesso a bebidas alcoólicas vendidas no varejo e proibições de publicidade, promoção e patrocínio.
"Experiências de outros países mostram que isso reduz o custo social do consumo de álcool sem reduzir arrecadação. É um ganha a ganha", afirma Pedro de Paula. Após aplicar a política para álcool, a Rússia, por exemplo, passou de 20,4 para 11,7 litros de álcool per capita no período entre 2003 e 2016.
No Brasil, o Congresso Nacional analisa uma nova reforma tributária, que entre outras propostas prevê a criação de um imposto seletivo para desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde, como as bebidas alcoólicas.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que o o consumo abusivo de álcool é um grave problema de saúde pública no Brasil, com impacto direto na mortalidade e nos custos do SUS.
Informa que o governo federal tem enfrentado o problema, por exemplo, com a expansão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que oferece acolhimento e tratamento para pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas.
"Desde 2023, foram habilitados 185 novos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), totalizando 3.019 unidades. Ao todo, a Raps conta com 6.397 pontos de atenção em todo o país. Em 2024, os Caps registraram 77.777 atendimentos a pessoas com problemas relacionados ao consumo de álcool."