Tragédia revela eliminação de dados sobre chuvas e falhas de operação no Rio Grande do Sul
Esse é um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) da UFRGS
Foto: Divulgação
O monitoramento correto de rios e lagos e o sistema de diques e bombas de Porto Alegre poderiam ter atenuado os efeitos das enchentes que atingiram o estado. Ambos, porém, apresentaram uma série de falhas durante as chuvas, segundo especialistas.
Um dos maiores problemas, apontam os pesquisadores, é que não há dados sobre os afluentes dos principais rios. Com isso, as autoridades demoram mais tempo para descobrir se a água está subindo em determinada região. Isso é principalmente grave em cidades menores do interior, que muitas vezes só descobrem a cheia quando é tarde demais.
Um exemplo é o rio Vacacaí, que desemboca no rio Jacuí, diz o professor Fernando Mainardi Fan, do Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Ele explica que o Vacacaí não é monitorado em tempo real. Por isso, só foi possível saber que ele tinha subido de nível quando a água chegou ao Jacuí. Um bom monitoramento da vazão teria ajudado a prever consequências em cadeia até o Guaíba, onde deságua a maior parte dos rios gaúchos.
O monitoramento, para o pesquisador, deveria ter sido feito pelo governo estadual, como forma de prevenção a enchentes.
Para Walter Collischonn, também da UFRGS, diz que é preciso pensar em uma solução diferente em municípios que foram atingidos no interior do estado. "Não dá para pensar em diques e represas em cidades menores. É preciso melhorar o acompanhamento de cheias e retirar as pessoas de áreas de maior risco", diz. Neste caso, é preciso saber quais são as regiões em que as remoções de pessoas são inevitáveis por conta do risco constante de enchentes e deslizamentos de terras.
Em outros pontos das cidades onde o risco de enchentes e deslizamentos é eventual, ele diz ser possível criar sistemas de alerta, preparar a população para agir de forma antecipada e criar rotas de fuga. "É impossível pensar em remover de lugar cidades inteiras, muitas delas na faixa de 100 mil habitantes", diz.
Além disso, Fan aponta que falta um mapa topográfico completo de todo o Rio Grande do Sul, algo que existe em Santa Catarina e Pernambuco, por exemplo.
Agora, os pesquisadores apontam uma série de medidas urgentes e de médio e longo prazo para mitigar os efeitos da cheia atual e evitar que novos eventos extremos tenham o mesmo impacto daqui para diante.
Eles dizem, por exemplo, que a capital gaúcha poderia ter evitado o desastre se seu sistema tivesse funcionado corretamente.
Collischonn diz que o sistema de bombas e diques que protege Porto Alegre foi construído para evitar enchentes mesmo se o nível da água do lago Guaíba chegasse a 6 metros. Ele chegou a 5,33 metros, mas a cidade foi alagada.
Um grupo de 11 pesquisadores, entre eles engenheiros e ex-presidentes de órgãos do sistema hídrico, meio ambiente e obras da administração estadual e municipal, divulgou uma carta aberta a respeito da situação dos diques e propôs uma série de iniciativas para a atual gestão municipal.
Na carta, eles sustentam que não houve vazamento nos diques e muros, e afirmam que o problema foi causado por falta de manutenção das comportas. "As deficiências já ficaram visíveis no ano passado, quando o sistema foi acionado por conta das inundações do vale do Taquari", afirmam.
As próprias casas de bombas e estações de bombeamento de água estão inundadas.
Agora, com a cidade ainda alagada, eles propõem uma série de medidas emergenciais, para fechar os vazamentos nas comportas e recompor os condutos forçados para conseguir bombear a água que está na cidade de volta para o lago. Eles apontam a possibilidade de usar mergulhadores para vedar as comportas com sacos permeáveis com uma mistura de areia, cimento, borrachas e parafusos.
Outra prioridade é secar as bombas e protegê-las com ensacadeiras para que elas possam voltar a ser utilizadas. A instalação elétrica para acioná-las pode vir de um sistema paralelo de cabos elétricos da companhia de energia. Se não possível, as soluções são usar geradores movidos a combustível ou utilização de bombas volantes de grande vazão. A medida garantiria o escoamento sem retorno da água.
Para o professor Paulo Roberto Jacobi, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP (Universidade de São Paulo), um dos desafios quando a água baixar será criar uma infraestrutura provisória para o funcionamento da cidade para garantir o abastecimento de água e luz e a retomada total do transporte urbano e da coleta de lixo, por exemplo.
Para ele, é a fase de garantir moradias provisórias para os desabrigados, e garantir que ela não vire uma solução definitiva. As questões de saúde, por exemplo, ele considera que serão urgentes assim que o nível da água baixar, com os riscos de epidemias de hepatite e leptospirose.
Jacobi afirma que a situação mostrou a fragilidade do planejamento e a reconstrução das cidades atingidas vai mexer inclusive nas metas de gastos públicos do governo federal. "Será necessária a reconstrução de vários equipamentos, mas não dá para repetir os mesmos erros", diz.
A situação da região metropolitana exige, em alguns casos, soluções diferentes. Em Gravataí e São Leopoldo, diferentemente do que aconteceu em Porto Alegre, a água ultrapassou a capacidade dos diques. Para isto, será necessária uma busca de soluções de médio e longo prazo.
Fan e Collischonn alertam que um dos desafios no médio e no longo prazo será evitar a tentação de grandes obras desnecessárias e descuidar de soluções mais simples, como garantir o pleno funcionamento das estruturas já existentes e aperfeiçoá-las. Eles dizem que o canal entre a lagoa dos Patos e o oceano, que o governo federal anunciou como uma das possibilidades em estudo, é um exemplo destas soluções apressadas.
Para Fan, uma das soluções é melhorar o plano de prevenção a enchentes. Para ele, a falta de informações sobre a quantidade de chuvas e a situação de rios secundários, afluentes nas bacias que desembocam no lago Guaíba, foi fundamental para que a tragédia no Rio Grande do Sul tomasse a dimensão que teve.
Para a professora de sociologia Lorena Fleury, do Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade da UFRGS, a reconstrução das cidades deve estar acompanhada de uma mudança na política de prevenção a eventos extremos. "Não dá para o governo estadual fazer um plano energético que pretende usar termoelétricas a carvão e o municipal defender um plano diretor que beneficia a construção em áreas que hoje estão inundadas", exemplifica.
Em nota, o governo gaúcho afirma que investiu R$ 7 milhões em um radar meteorológico, com um investimento total de R$ 26 milhões em cinco anos, e que o novo sistema está em fase de implantação. Diz que, por conta dos eventos climáticos extremos, iniciou um mapeamento de novas tecnologias e sistemas utilizados em outros estados e países, para verificar a viabilidade da implantação.
Explica que o monitoramento hidrometeorológico apresenta dados da situação do nível dos rios mais representativos em tempo real para aperfeiçoamento da gestão. E diz que "está em curso a contratação de consultoria especializada para a qualificação da informação fornecida, buscando uma precisão ainda maior por meio do aperfeiçoamento tecnológico dos modelos".
Maurício Loss, diretor-geral do Departamento Municipal de Água e Esgoto de Porto Alegre, afirma que nenhum sistema foi feito para operar no limite e disse que a margem de operação do sistema é desconhecida. Ele atribuiu o alagamento a falhas de concepção do projeto que não haviam sido constatadas antes por falta de enchentes como a atual. "Cabe a nós agora fazer estas correções", diz.