A Jaca e a uva

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A Jaca e a uva

Ninguém pense que o título deste modesto artigo é mais uma  fábula de La Fontaine. Ele era useiro e vezeiro em intitular  suas famosas fábulas com os personagens emblemáticos, com que descrevia as valiosas lições nelas contidas. O Lobo e o Cordeiro, A Cigarra e a Formiga, O Corvo e a Raposo são algumas das mais conhecidas. 

Não, a Jaca e a Uva não é uma fábula, muito menos de  autoria do fabulista francês do século XVII. É uma cena caricatural protagonizada por Lula da Silva. Vestido de branco, elegante bermuda, ornado com vistoso chapéu Panamá, óculos escuros ao estilo de um turista norte-americano, exibindo a enorme fruta vietnamita, que seus convidados confundiram com uma minúscula uva.

Jaca, como sabemos, é uma palavra do idioma vietnamita. A jaqueira foi transplantada do sudeste asiático pelos colonizadores portugueses e proliferou entre nós, tornando a jaca uma das frutas mais apreciadas pelos brasileiros. 

Lula não hesitou em advertir, por duas vezes, os cerca de três milhões de estudantes que, no dia seguinte, seriam submetidos ao Exame Nacional do Ensino Médio -ENEM, que aquela fruta era uma jaca, e não uma uva. 

Lendo algumas questões constantes da prova do ENEM chequei á conclusão que nem Lula, nem seus convidados  tinham razão. A prova é repleta de jacas e uvas e a sua maior dificuldade é distinguir as uvas das jacas. Um cacho de uvas verdes era claramente autoritário e a jaca dura e viscosa eram bagos totalitários.

Para os formuladores da prova não importam os fatos. Prevalecem as ficções ideológicas. Não pretendem aferir conhecimentos, valorizar a ciência, fazer fervilhar o caldeirão das ideias. Converter os jovens em  corifeus de um pensamento único é a fé dos falsos profetas. Hannah Arendt bem sentenciou: “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção”.

O que deveria ser compreendido como conquistas da nossa sociedade converteu-se numa obra de demolição. Tudo que é sólido desmancha no ar. Nossa invejável competência econômica, social e tecnológica na produção de alimentos, não passa de uma chuva de veneno. 

Antonio Risério percebeu, com absoluta lucidez antropológica, em seu livro Mestiçagem, Identidade e Liberdade, o  “quanto  andamos  alienados com relação a nós mesmos”, e  apesar de  “todas assimetrias  e  crueldades que  marcaram a construção  histórica do  país, nossas formas de  viver, criar, produzir, amar, falar, cantar e pensar são indissociáveis das nossas mestiçagens”. O ENEM fez questão de negar a grandeza moral e popular dessa união de raças e culturas, solida base para desconstruir a persistência do racismo entre nós.

O panfleto ideológico não poupou os estudantes da lenga-lenga do “racismo estrutural”, artifício cuja vigência só poderia ser admitida nos países como África do Sul, Estados Unidos e outros que viveram ou ainda vivem, sob os mais  variados disfarces, a  segregação racial e os  regimes de “apartheid”. 

E assim prossegue o exame do ensino médio, entre construções sintáticas originais e aleivosias linguísticas deflorando a última flor do Lácio, mais sepultura do que esplendor, ao propor aos jovens desprevenidos o tema da  redação, assim descrito: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

Filólogos, gramáticos, poetas imaginaram um trabalho invisível, um terror fantasmagórico, no qual mulheres macabras se desdobravam, em noites de tempestades e trovões! 

Graças ao ENEM, revivemos os anos tenebrosos da Ditadura militar, no qual um certo jornalista carioca, Sérgio Porto, o Stalisnaw Ponte Preta, colecionava e publicava os  disparates e absurdos praticados pela censura aos jornais, ao teatro, as criações musicais, enfim à  cultura -o FeBeaPa, festival de besteiras que assola o país.
Os tempos tenebrosos são outros. O Brasil tem um FeBeaPa frutífero, de jacas e uvas!

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