O fantasma do medo

Ás

O fantasma do medo

Em 1948, Lucien Febvre, consagrado historiador, ergueu sua  voz para dizer que a História deveria ser tida como problema  e que um dos mais aflitivos problemas do homem era o amor, a morte, a piedade, a  alegria, a  compaixão e, por que não, o medo? Do seu inconformismo nasceu a “história das mentalidades”, com a  finalidade de preencher esse imenso vazio.

Jean Delumeau atendeu aos  clamores do mestre e  cuidou de proceder a uma vasta pesquisa, que deu origem à  sua História do Medo no Ocidente, livro que  vasculha os idos de  1300 a 1800 e descortinou o medo aterrorizante dos  homens frente às guerras recorrentes, à peste devastadora, o medo da noite obscura, o satanismo, o temor de morrer de  fome, a diabolização da mulher, entre tantos outros que produziram os  sentimentos capazes  de  aniquilar a paz e o sossego humanos.

Embora o medo, ao longo da História, cambiasse sua face  negra, ele nunca  deixou de ser o inimigo número um das  civilizações. “Cantaremos -como proclamou o poeta Drummond de Andrade- o medo dos grandes  sertões, dos mares, do deserto, o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das Igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo  dos  democratas, o medo  da morte e o medo de depois  da morte, depois morreremos de medo e sobre nossos túmulos nascerão rosas amarelas e medrosas”.

Como se vê, o medo não poupa nada que existe na face da terra, onde pisam e vivem os homens, onde nascem as  culturas e onde passa o tempo histórico.

O progresso científico, técnico e moral experimentado pelos  homens desde épocas quase imemoriais, parecia suficiente para soterrar os medos e libertar a humanidade dessa peste devastadora. Não foi isso o que aconteceu. Pelo contrário, o medo ronda a humanidade e resolveu instalar-se com toda  virulência que  representa, nas frágeis  instituições que  governam o nosso país.

Hoje temos medo de falar, escrever, pensar e contrariar o  poder  dominante. No decorrer dos anos 20, um deputado mexicano, que exprime bem o radicalismo anti-religioso, semelhante ao que vivenciamos aqui afirma que “é preciso penetrar nas famílias, quebrar as estátuas e as imagens dos  santos” e proclamar um artigo único: “na República, só haverá garantias para aqueles que pensam como nós.”

A semelhança não é mera coincidência, mas uma  orquestração que  se  converteu em normas  totalitárias , que a  todos  acomete e  que a  qualquer cidadão poderá  atingir, na medida que não reze e reproduza o pensamento único, instituído pelo aliança entre o poder  executivo e o judiciário, sob às  vistas complacentes do legislativo.

O medo enraizou-se nas entranhas da sociedade civil e nada  escapou ao diktat autoritário, travestido em defesa  de estado democrático de  direito.  O filósofo Baruch Spinoza, na metade do século XVII, lidando com os absurdos do  Estado absolutista, advertiu que “as  coisas nos parecem absurdas ou más porque delas só temos um conhecimento parcial e estamos na completa ignorância da ordem e da coerência da natureza como um todo”. Subvertido, o processo judicial é submetido à violação e à afronta, desde as normas constitucionais até o devido processo legal. Impedidos do socorro da lei, todos os cidadãos veem ruir perante si as garantias da ordem democrática, arrastando nosso país aos subúrbios do mais tacanho e comezinho regime ditatorial.

Depois de provar o fruto amargo da perseguição política, Nelson Mandela testemunhou para os pósteros: “aprendi que a coragem não é a ausência de medo, senão o triunfo sobre  ele. O homem valente não é aquele que não sente medo, senão o que conquista esse medo”.

Comentários

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Se achar algo que viole os termos de uso, denuncie:[email protected]

Faça seu comentário