Reflexões sobre remuneração em tempos de déficit de imaginação

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Reflexões sobre remuneração em tempos de déficit de imaginação

Na reportagem do Valor¹ de 10.09.2024, uma consultoria internacional, com base em uma grande pesquisa, recomendou que a avaliação de desempenho deve sair de um modelo baseado em produtividade para um modelo mais qualitativo. Ela também chama de déficit de imaginação a atual e crescente falta de profissionais criativos. 

Neste artigo, vou me inspirar nessa pesquisa utilizada pelo Valor e também em artigos nos quais já tinha abordado a imperfeição dos indicadores de desempenho para refletir sobre um aspecto complementar: a remuneração de profissionais especialistas. 

A constatação mais presente no ambiente empresarial sobre pessoas é que há uma grande escassez de mão de obra qualificada, isso  em um momento em que se enfatiza que o diferencial das empresas de sucesso são as pessoas. Portanto, a iniciativa mais óbvia é que as empresas deveriam criar políticas de atratividade e retenção das pessoas qualificadas enquanto lidam com a qualificação dos profissionais, os quais potencialmente seriam os próximos a ocupar essas posições. Apoiar a formação de pessoas em estágios iniciais não parece ser uma prática das empresas porque não há garantia que esse profissional em formação vá compor o quadro de funcionários da empresa. Quem percebeu esse gap se antecipou e criou programas e até unidades de negócios para formação própria de pessoal, que é o caso de hospitais, escolas de inglês, bancos e consultorias de investimentos. 

A falta de profissionais qualificados é mais crítica em empresas nas quais há uma necessidade maior de pessoal com altos níveis de capital intelectual em termos de habilidades técnicas.  Minha reflexão é que muitas empresas que dependem desse capital intelectual ainda não o reconhecem financeiramente, principalmente em contextos em que o desempenho é  avaliado com base em quantidade e produtividade, e aspectos como a qualidade do trabalho ou da inovação, ou ainda do compartilhamento do conhecimento, não são considerados. Isso é particularmente forte em empresas nas quais o funcionário que tem contato direto com a situação problema, ou seja, com o cliente, possui um desempenho muito acima da média, que pode fazer a diferença em termos da avaliação do nível de satisfação com o serviço. Os serviços até podem ser padronizados, mas há um “tempero” a mais colocado por esse profissional.

Considere o caso de uma empresa em que os profissionais são divididos em categorias por vocação ou mesmo por função, e que muitos sejam remunerados por hora trabalhada, considerando faixas de remuneração compatíveis com a função ou modo de contratação. Para esse profissional - seja ele um analista de banco de dados, um consultor, um advogado, um professor, um médico, um educador físico, um comissário de bordo etc. - ter uma maior remuneração, ele precisa se envolver em mais projetos, atender mais clientes, pacientes, alunos, voos, etc., uma vez que ele já pode ter atingido o máximo em termos de carreira horizontal e a busca por cargos gerenciais pode não ser um objetivo desse profissional. E é aí que mora o perigo, pois, para ganhar mais, ele precisaria trabalhar mais, o que pode até parecer correto à primeira vista. Contudo, esse aumento de carga poderia impactar na qualidade da saúde desse profissional e, consequentemente, na empresa. 

Considere o caso de empresas de serviços profissionais. Nelas, para que os profissionais tenham uma remuneração compatível com o nível de conhecimento e responsabilidade, eles precisam chegar ao níveis mais superiores dessas empresas, o que é muito extenuante e longo em termos de tempo, principalmente considerando as expectavas das gerações atuais. Nesse caso, é até mais grave, pois os salários são fixos e, quando se trabalha mais que o máximo permitido, essas horas extras geralmente ficam em um banco de horas. Ou seja, os profissionais também não conseguem aumentar suas remunerações, a menos que sejam promovidos. 

Logo, o caminho natural para alguns profissionais é sair para trabalhar em outras organizações ou criar o seu próprio negócio. Os empreendedores, que são poucos, se arriscam a montar empresas concorrentes perpetuando o mesmo modelo. Parece que o senso comum é que esse alto turnover faz parte do modelo de negócio, onde a ideia é que se pague para aprender e, depois de um certo tempo, eles sejam substituídos por novos funcionários. A reflexão é que esse tipo de indústria tem atraído menos novos talentos e acaba sofrendo por escassez de mão de obra qualificada, que é praticamente um requerimento natural por se tratar de empresas que vendem expertise. Poucas pessoas aguentam esperar para terem uma remuneração elevada, o que normalmente só acontece quando se tornam sócios. Aliás, muitas não querem sociedade pois sabem o sacrifício para chegar lá, ou simplesmente não têm vocação. Então, a saída se torna o caminho natural, e a qualidade dos serviços pode ser comprometida. Ressalto que estou falando de modelo de partnership de verdade.

Deixo aqui uma pergunta: como esses profissionais seriam estimulados extrinsecamente a abrir oportunidades para os colegas também poderem trabalhar mais, se isso significaria que eles trabalhariam menos e consequentemente ganhariam menos? Como eles se motivariam a compartilhar o conhecimento acumulado e desenvolver e formar novos profissionais, se isso implicaria em perda de remuneração?. Não estou aqui defendendo que todos tenham remuneração variável, até porque existe a discussão que o excesso de motivação extrínseca pode diminuir a motivação intrínseca. 

Em tempos de economia de serviços, baseada na inovação e dependente do capital intelectual, acho que faz sentido pensar sobre isso. A remuneração diferenciada pela qualidade da entrega, e não estou somente falando de projetos, mas também de desenvolvimento de pessoas e de contribuição para a inovação, que geralmente é fruto de muito esforço de capacitação e experimentação, pode fazer a diferença nas empresas que precisam de profissionais com esse perfil. A gestão do capital humano ainda tem muito que evoluir no Brasil.

¹ https://valor.globo.com/carreira/noticia/2024/09/10/8-tendencias-globais-de-capital-humano-em-2024.ghtml

 José Carlos Oyadomari é Doutor em Controladoria e Professor pelo Insper e Mackenzie. Membro dos Conselhos Consultivos da HVAR e Consulcamp. Diretor de Parcerias da TRAAD Wealth Management. Apresentador do Programa Gestão Por Quem Faz. https://www.youtube.com/@GestaoPorQuemFaz
 

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