Essa Inesquecível era uma enciclopédia viva com a qual tive a honra de passar horas conversando sobre o tempo antigo. Cantulina Garcia Pacheco era o seu nome, mas todos a conheciam como Tia Cantu. Nascida em 16 de março de 1900, tia Cantu era neta de Joaquim Vieira da Silva, Obá Sanyá – um dos apoiadores para a fundação do Ilê Axé Opô Afonjá. Era filha adotiva de um Tenente do Exército, teve uma educação exemplar e muito rígida. Em 18 de junho de 1936, tia Cantu foi iniciada pelas mãos de Eugênia Anna dos Santos – Mãe Anninha, para o Orixá Ayrá, passando a ser chamada de Ayrá Tọlá – honrada por Ayrá. Após o falecimento de Mãe Anninha em 1938, tia Cantu foi morar no Rio de Janeiro com Mãe Agripina de Aganju, que - neste tempo - cumpria determinações de Mãe Anninha e ocupava o cargo de Iyalaxé do Opô Afonjá do Rio.
Anos mais tarde, tia Cantu se torna Iyakekerê da casa e, após o falecimento de Mãe Agripina em 21 de dezembro de 1966, ela se torna a terceira geração de matriarcas do Opô Afonjá do Rio de Janeiro, se tornando Iyalaxé da casa. Em 1988, por ordens de Xangô, tia Cantu retorna pra Salvador, para reocupar o cargo de Iyá Egbé – Mãe da Comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá da Bahia, deixando o Axé do Rio de Janeiro aos cuidados de Mãe Regina de Iemanjá. Até os dias de hoje, tia Regina lidera como uma verdadeira Rainha. Tia Cantu era uma enciclopédia viva. No vídeo-documentário “E daí Aconteceu o Encanto”, inspirado no primeiro livro de Mãe Stella, tia Cantu conta do tempo em que viveu ao lado de Mãe Anninha e de algumas passagens sobre o Candomblé da Bahia. Até das perseguições policiais, a exemplo das ocorrências com Procópio de Ogun, que era constantemente atormentado pelo temido delegado Pedrito Gordo. E, enquanto muitas pessoas liam ou assistiam sobre os contos de Jorge Amado, eu era agraciado com tais narrações diretamente da fonte. Foi numa dessas conversas que algo sobrenatural aconteceu comigo. E não é estória!
Certa feita estava na casa de tia Stella em uma das minhas tardes de aprendizado sobre coisas de Axé e, ao terminar o nosso papo, tia Stella me pediu para que eu levasse um quadro até a casa de tia Cantu. Sua casa ficava a alguns metros da casa de tia Stella. Chegando lá, ela estava se preparando pra almoçar. Acreditem! No auge dos seus 100 anos, tia Cantu ainda tomava uma dose da velha destilada antes do almoço. E foi justamente nesta hora que eu cheguei. Lá estava ela, sentadinha na cabeceira da mesa, olhando para o quintal. Do portão me identifiquei, tendo minha entrada permitida. Educadamente, pediu pra sentar e me ofereceu uma dose. Disse que não estava bebendo e me esquivei. Informei-lhe o motivo de minha vista, dizendo que não iria demorar. Deixei o quadro em cima do sofá e já fui me despedindo. Eis que ela me interrompe e começa a contar a história do quadro. Era uma imagem de Xangô. História vai, história vem, resultado; sentei-me. E, por pouco, não tomo uma dose. E talvez por isso, eu tenha mais motivos para acreditar que o quê aconteceu foi sobrenatural, e não efeito da bebida.
Tia Cantu começou a falar dos antigos – daqueles da época dela. Eles eram verdadeiros bruxos. Contou de um velho que fazia a folha de akokô se transformar em dinheiro. Mas depois explicou: não era que a folha se transformasse em dinheiro, mas quem o recebia, assim enxergava. Encantos daquele tempo! E aí ela falou de um velho que, já bem velhinho, alimentava sua longevidade com a energia de outras pessoas. E foi ai que ela disse assim: “Naquele tempo, os mais velhos faziam assim pra conseguir o que queriam.” E completou dizendo: “Me dê sua mão, meu sobrinho!” E eu, inocente, dei. Ela começou olhar em meu olho e não disse mais nada. Devagarzinho fui puxando minha mão da dela e voltamos a conversar. Tornou a falar que os antigos faziam dessa forma e, mais uma vez, pediu a minha mão. Só que, dessa vez, eu não dei. Desconversei, fui encerrando o assunto, me despedindo e fui embora. Acreditem! Foi só eu fechar o portão e pisar na roça, comecei a sentir frio de bater os dentes. O sol era de pouco mais do meio dia: calor de, mais ou menos, trinta graus! Céu sem nuvens, sol tinindo e eu tremendo de frio. Cheguei em casa morrendo de dor de cabeça e, sem dar muitas explicações pra minha mãe, fui me deitar. Lá pras tantas, tia Stella ligou pra casa a fim de saber respostas sobre a entrega do quadro, haja vista que eu ainda não havia retornado pra lhe dar um feedback. Foi quando minha mãe disse que havia chegado com dor e calafrios.
Preocupada, tia Stella foi lá em casa. Espantada, ela disse: “Como uma pessoa cai doente assim tão de repente?” Eu não agüentava nem falar de tanta dor de cabeça. Tia Stella contava que meu corpo estava gelado. Então a tia se transformou em mãe, e lá se foi a Mãe Stella aos pés de Xangô para tentar compreender o quê acontecia comigo, sobretudo levando-se em conta que há bem pouco tempo estávamos juntos, conversando e eu me sentindo tão bem! Para seu espanto, Xangô disse que algo havia tirado as minhas forças. Xangô orientou que fosse feito um ebó em mim. Logo após o ebó, comecei a melhorar e, assim, consegui relatar pra tia Stella tudo o que havia acontecido. Diante do relato, tia Stella disse que tia Cantu havia puxado a minha energia ao apertar minha mão. Pois Xangô havia dito que alguma coisa havia feito isto. Eu fiquei impressionando com o fato.
Demorei anos pra falar abertamente sobre este assunto, pois poderia/pode soar distorcido pra quem não conhece a dinâmica do Candomblé. E por mais que pareça assustador, hoje eu conto isso sem nenhum remorso ou temor. Muito pelo contrário: conto orgulhoso por ter convivido com pessoas de muito Axé e energia sobrenatural. É óbvio que hoje não irei facilitar [risos], mas também não acredito que existam mais tantas tias Cantus por ai, pois a magia do Candomblé está cada dia mais enfraquecida; tantas tradições vêm sendo quebradas e um novo formato de Candomblé (sobretudo 'midiático') vem imperando sem nenhuma referência Ancestral nos levado ao enfraquecimento da magia e o crescimento descontrolado dos famosos Candomblés de conveniências, onde tudo pode. Pois bem...
Tão honrada que foi, Tia Cantu viveu 104 anos até o dia que foi chamada de volta para o Orun, em 27 de junho de 2004.
Salve a Mãe da comunidade... Salve Ayrá Tọlá.