Editorial

Espirituoso e prestativo

Confira o nosso editorial deste domingo (9)

Por Erick Tedesco
Ás

Espirituoso e prestativo

Foto: Reprodução

O desjejum de João de Deus consistia em dois pães com manteiga e meia xícara de café. Meia, porque outra dose, como esta, ele guardava para alguns minutos depois.

Com o estômago forrado, João de Deus já podia sair à frente da casa, respirar o ar matinal e rumar até os fundos no quartinho que entupiu de velharias ao meio de uma mesa conservada, onde às vezes se sentava para realizar alguma atividade. Um dia, quando criança e de férias no interior, o acompanhei: entrou, olhou, exitou em sair, olhou novamente, e surrupiou um pedaço de madeira antes de enfim fechar a porta, sem me chamar, nem nada. 
 
Tomou mais meia xícara de café e não resistiu em sempre derramar mais líquido do que marcaria a metade do recipiente alado. Um prazer inexplicável. Costuma dizer que é o combustível que o fazia viver, tamanho o gosto pela bebida. 

Adoçada e quente, por favor. Na mesa da sala, João de Deus deixou a madeira que trouxe dos fundos. A neta do Honório, outro vizinho, precisava de um toco para trabalho escolar.
 
João de Deus era prestativo. Sentia-se bem surpreendendo as pessoas e ajudar mesmo quando não é interpelado por uma “mãozinha”. Parecia ser uma necessidade, como um propósito em vida. Xingava diabos quando falam que se tratava de compaixão e que tinha a ver com a “benção” do sobrenome.
 
Não gostava do nome de batizo. Aliás, o batismo não condizia com sua curiosidade pelos pormenores e graças de outras religiões. Vivia cercado de religiosidade e ser definido por uma, e ainda mais ainda bebê, sem consciência disso, o deixava possesso. Resmungou a vida toda, mas foi prestativo com toda a vizinhança – morava na rua da casa da minha avó materna.

Brigou a vida toda com Deus e mundo. Não tirou Deus do nome por pirraça, como um escracho. Mas ainda olhava para os céus e, por instantes, imaginava como viveria se fosse um homem religioso. Legitimava, enfim, a existência com prazeres de fato sentidos. Naquele dia ali com ele, depois do café ele voltou ao quarto dos fundos, abriu o armário e me disse que era hora da comunhão, com um trago de cachaça e um pouco – jogado no chão – para o santo.

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