Estatal baiana apoia retorno de mineradora proibida de atuar em quilombo em novo projeto

Foto: Reprodução/Redes Sociais
"Esse pessoal só chega com conversa bonita e boa. Eles nunca vão dizer o mal que vão causar e até que ponto vai se estender", critica a agricultora Catarina Oliveira, 52, presidente da Associação da Comunidade de Bocaina, em Piatã (BA), sobre a mineradora inglesa Brazil Iron.
Em 2022, a empresa teve uma mina desativada na região das comunidades de Mocó e Bocaina por irregularidades ambientais e sociais. Agora, investe US$ 5 bilhões (cerca de R$ 27,2 bilhões) em um empreendimento que diz visar a descarbonização da mineração diante da crise climática e seguir "os mais altos padrões ambientais do mundo".
A associação quilombola teme que sua experiência negativa se repita e aponta a participação do Governo da Bahia no projeto -da atuação de uma estatal baiana no empreendimento à de um mediador da Casa Civil que, segundo relatos, teria sugerido a descaracterização da comunidade como quilombola.
O projeto de 430 km², feito em parceria com a estatal CBPM (Companhia Baiana de Pesquisa Mineral), passaria pelas cidades de Abaíra, Piatã e Jussiape, na Chapada Diamantina. Segundo o EIA (estudo de impacto ambiental), acessado pela reportagem, envolveria novamente a Bocaina e a mina desativada.
A empresa, por sua vez, defende que quer fazer da Bahia "o novo berço de ferro e aço do Brasil, usando 100% de energia renovável e hidrogênio verde", além de beneficiar as comunidades e o meio ambiente.
Reclamações das lideranças da Bocaina contra a Brazil Iron são apuradas pela DPU (Defensoria Pública da União) e pelo Ministério Público da Bahia em processos sobre infrações do projeto de pesquisa mineral conduzido de 2011 a 2022. Os moradores também movem um processo indenizatório na Justiça inglesa.
Um relatório do Inema, órgão ambiental da Bahia, constatou que a empresa desmatou ilegalmente cerca de 50 hectares de vegetação nativa, inclusive em áreas de preservação, e descumpriu o direito à consulta prévia das comunidades quilombolas.
O documento aponta ainda disposição inadequada de resíduos, falta de estrutura para conter sedimentos, danos a nascentes e cursos d’água, erosão de encostas e a realização de atividades sem licenciamento ambiental adequado.
Os moradores relatam que a empresa teria feito explosões sem aviso prévio, levantando poeira que dificultava a respiração e causando rachaduras nas casas. Também apontam contaminação do solo e da água por metais pesados, confirmada por análises da Ufba (Universidade Federal da Bahia).
"Depois de tudo que vem acontecendo, eu não sei se vale a pena [um projeto de mineração]. Para a comunidade, não fica nada a não ser a destruição, os prejuízos, os roubos, as terras griladas, a desamizade, os problemas psicológicos", diz Catarina.
Segundo a empresa, que nega todas as acusações dos processos, o novo projeto não tem relação com o anterior e pretende construir um complexo industrial de ponta, uma mina, um ramal ferroviário de 120 km, uma planta de pelotização e uma usina do chamado ferro verde. A empresa tem 28 direitos minerários na Bahia, sendo a mina Mocó apenas uma pequena porção do empreendimento inteiro.
A Brazil Iron afirma que já investiu R$ 1,7 bilhão no projeto, gerando 240 empregos diretos, e prevê 55 mil postos de trabalho e arrecadação de R$ 50 bilhões em impostos.
O projeto de transição para uma economia de baixo carbono é "um dos compromissos do nosso governador, Jerônimo Rodrigues (PT), com o futuro do nosso estado", disse no anúncio o presidente da CBPM, Henrique Carballal, condenado neste ano pela prática de "rachadinha" quando foi vereador de Salvador pelo PT.
A CBPM é estratégica para a comunicação com os moradores, uma vez que a Brazil Iron está proibida, pela Justiça inglesa, de entrar em contato com as comunidades de Mocó e Bocaina devido a tentativas de convencê-las a retirar o processo no tribunal britânico. A mineradora nega ter pressionado a população local.
A estatal pediu no ano passado intervenção do Itamaraty para que a Justiça inglesa não aceitasse julgar o caso da mineradora fora do Brasil, conforme revelou a revista Piauí. Logo depois, como testemunha da Brazil Iron, Carballal enviou uma carta tentando dissuadir o tribunal inglês, uma vez que isso "poderia desencorajar investimentos estrangeiros na Bahia". A Justiça inglesa acatou as ações em março deste ano.
À reportagem, a CBPM respondeu que presta consultoria técnica à empresa britânica. Segundo a mineradora, a estatal facilita processos regulatórios e apoia o engajamento comunitário.
MEDIAÇÃO DO GOVERNO DA BAHIA
A comunidade da Bocaina, com cerca de cem famílias, foi reconhecida como quilombola pela Fundação Palmares em 2013, apesar de ainda não ter a titulação de terra pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Incentivada pelo Inema, órgão ambiental da Bahia, tenta agora fazer o Cefir (Cadastro Estadual Florestal de Imóveis Rurais) quilombola. O documento serve como prova de ocupação tradicional e auxilia na proteção da comunidade contra invasões e grilagem.
Em fevereiro deste ano, porém, dizem as lideranças quilombolas, o tenente-coronel da Polícia Militar da Bahia, Paulo Cézar Cabral, mediador de conflitos da Casa Civil, sugeriu que o Cefir poderia tirar as casas dos moradores, tornando-as da União.
Em maio, o Ministério Público Federal publicou uma nota de esclarecimento sobre o Cefir quilombola dirigido à Bocaina. No ofício, o procurador Ramiro Rockenbach afirmou que estavam sendo propagadas informações falsas, "com atitudes desrespeitosas e que almejam constranger e desacreditar as lideranças das comunidades tradicionais".
Procurado pela reportagem por email, mensagem e ligação durante três semanas, o Governo da Bahia não respondeu sobre a atuação do mediador de conflitos.
Mesmo visada em projetos bilionários, diz a líder quilombola Catarina, desde o início dos anos 2000, a comunidade pede ao governo barragens de água, nunca entregues. Piatã fica em uma área de caatinga, bioma de clima seco e vulnerável à crise climática.
Nascida e criada na Bocaina, Catarina tinha uma roça na comunidade de Mocó, que alimentava com água do rio Bebedouro. Com o tempo, a água foi secando e, devido à atuação da Brazil Iron, na visão da moradora, ficou contaminada. Hoje ela planta principalmente no quintal de casa.
Para Claudio Dourado, membro da Comissão Pastoral da Terra na Bahia, a comunidade local tem sofrido "o efeito das mudanças climáticas e os efeitos de quem discute a inovação diante das mudanças climáticas".