Ganho acima da inflação no Judiciário extrapola várias vezes o do funcionalismo
Estudo recente do Tesouro Nacional mostrou que o Brasil gasta 1,6% do PIB (cerca de R$ 160 bilhões) com o Judiciário
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Foto: Agência de Notícias CNJ
Funcionários do Judiciário federal e dos estados lideraram nas últimas décadas os ganhos salariais entre todas as carreiras do funcionalismo. Considerando a remuneração mediana, os servidores da Justiça federal conseguiram ganhos de 130,1% acima da inflação desde 1985. Nos estados, a alta foi ainda maior: 213,6%.
A mediana é o valor exatamente no meio do conjunto de remunerações. No caso dos federais do Judiciário, ela alcança hoje R$ 15.856 ao mês, mas chega a R$ 27.223 na parcela dos 10% mais bem pagos. Nos estados, são R$ 10.197 e R$ 24.243, respectivamente.
Os valores que a elite do funcionalismo leva para casa, porém, podem ser bem maiores se considerados os chamados penduricalhos --verbas indenizatórias adquiridas por magistrados por meio de atos administrativos dos tribunais, leis aprovadas pelo Legislativo e medidas autorizadas por órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Os dados foram compilados a partir da Rais (Relação Anual de Informações Sociais), que agrega informações sobre empregos e salários no setor formal, pela equipe do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério do Planejamento e Orçamento.
Estudo recente do Tesouro Nacional mostrou que o Brasil gasta 1,6% do PIB (cerca de R$ 160 bilhões) com o Judiciário, valor três vezes superior à média de outros emergentes. Quase 83% da despesa é direcionada a salários.
Os aumentos reais de 130,1% e 213,6% na remuneração mediana dos servidores dos judiciários federal e estadual ultrapassam muito o reajuste de 45,5% (também acima da inflação) da mediana dos rendimentos do conjunto do funcionalismo público brasileiro, considerando os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo e as três esferas de governo (União, estados e municípios).
Ou seja, em quase 40 anos, foram os membros do Judiciário os que mais tiveram aumentos superiores à inflação. No setor privado, são poucas as carreiras que puderam contar com reajustes muito maiores do que a variação dos preços, especialmente em ciclos de baixa da economia.
Segundo o levantamento, no entanto, no decil mais bem pago entre todo o funcionalismo (desconsiderando os penduricalhos) estão os servidores do Poder Legislativo federal, que inclui funcionários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A remuneração média desses 10% no topo chega a R$ 36.704 --e é de R$ 6.903 na mediana.
Deputados federais e senadores, por exemplo, têm salário bruto de R$ 46.336,10, valor do teto constitucional para 2025 --além de seus gabinetes terem direito a diversos assessores e outras verbas.
Para Felix Lopez, coordenador da plataforma Atlas do Estado Brasileiro, o aumento real de 45,5% na remuneração mediana de todo o funcionalismo público brasileiro de 1985 para cá não pode ser considerado exagerado, pois muitas carreiras ganhavam relativamente pouco no passado.
No setor público como um todo, a mediana equivalia a R$ 2.255 em 1985 (em valores corrigidos). Hoje, é de R$ 3.281.
A recomposição salarial, diz Lopez, produziu efeitos positivos no recrutamento e no atendimento ao público.
No caso dos servidores municipais, os rendimentos ainda são às vezes menores que os de cargos similares na iniciativa privada. Nos estados, com exceções, os salários públicos e privados se equivalem. "As grandes distorções continuam no funcionalismo público federal e no Judiciário", afirma.
Mas são justamente aqueles com menor remuneração (nos estados e municípios) que estão na linha de frente com a sociedade. Segundo pesquisa Datafolha de 2024, apenas 41% dos brasileiros consideram o atendimento do setor público ótimo/bom; e 80% são favoráveis a demissões no funcionalismo por mau desempenho.
No Brasil, no entanto, 65% dos servidores têm estabilidade no emprego. Chamados estatutários, raramente podem ser dispensados.
"Outro problema é que seguimos com um padrão de muita desigualdade na remuneração na área pública, com distâncias muito grandes entre os decis [dos 10% mais mal remunerados aos 10% mais bem pagos]. Isso só não é escandaloso porque vivemos numa sociedade muito desigual, e tomamos isso como algo natural", diz Lopez.
Segundo o economista e doutor em direito Bruno Carazza, autor de "O país dos privilégios", obra em que faz uma radiografia das benesses pagas pelo setor público a uma elite do funcionalismo, uma característica do Judiciário é que a maioria dos servidores hoje tem remuneração elevada --além dos penduricalhos.
Segundo cálculos de Carazza, entre 2018 e 2023, cerca de R$ 40 bilhões foram pagos acima do teto constitucional a membros do Judiciário. "No Poder Legislativo federal houve uma moralização, e são raros os casos de pagamentos acima do teto, embora muitos hoje recebam perto do valor máximo. O problema dos penduricalhos segue concentrado no Judiciário", diz Carazza.
Entre os objetivos do ministro Fernando Haddad (Fazenda) para o biênio 2025-2026 consta a aprovação de projeto de lei para eliminar ou limitar pagamentos acima do teto constitucional. Já tramita do Congresso o PL 6.726/2016 neste sentido, mas o governo preferiria reiniciar as discussões, já que exceções permitindo pagamentos maiores têm sido agregadas ao projeto em tramitação.
Procurado para comentar o forte avanço na remuneração de membros do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça não deu retorno à reportagem.