Ilê Aiyê é legado vivo de Mãe Hilda, que enfrentou a Ditadura Militar por liberdade com gritos de resistência: ‘Se meus filhos forem presos, serei presa junto com eles’
Valéria Lima publicou neste ano, um livro biográfico da avó que marcou o movimento negro e feminista no Brasil
Foto: Reprodução/Acervopessoaldafamília
Hilda dos Reis Dias, conhecida como Mãe Hilda, foi a grande mulher por trás do bloco Ilê Aiyê. Ialorixá responsável por autorizar a criação do bloco e abrir as portas do terreiro, Ilê Axé Jitolu, para ser a sede do ‘Mais Belo dos Belos’. Neste lugar, ela deu todo o suporte emocional, psicológico e religioso que os integrantes, que ela tinha como filhos, precisavam.
Neste dia 1° de novembro, o Ilê Aiyê completa 50 anos de história sendo o primeiro e maior bloco afro do Brasil. O legado vivo de Mãe Hilda, que morreu em 2009, encanta a todos com os desfiles carnavalescos e marcou gerações através dos movimentos políticos.
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Neta de africanos e filha de Benta Maria do Sacramento e Aniceto Manoel Dias, Hilda nasceu 35 anos antes após a abolição da escravatura no Brasil. Ela chegou ao Curuzu aos 10 anos, onde ficou pelo resto da sua vida.
A história e trajetória de Mãe Hilda inspirou Valéria Lima, neta dela e atual diretora executiva do Instituto Mãe Hilda Jitolu, a imortalizar a memória que o bloco guardou da líder religiosa que batizou o movimento negro e transformou a vida da população negra da região.
Valéria Lima contou ao Farol da Bahia que Mãe Hilda era aquela que ia na frente dos desfiles, durante a Ditadura Militar, como forma de protesto gritava: “se meus filhos forem presos, eu serei presa junto com eles”.
Acervo pessoal da família
Mãe Hilda criou legado entre as mulheres e os movimentos negros no Brasil
No Curuzu, onde tudo começou, um grupo de jovens teve a ideia de criar o bloco Ilê Aiyê para dignificar a presença do negro no carnaval baiano. Então, Antônio Carlos dos Santos, conhecido como ‘Vovô do Ilê’ - um dos fundadores do bloco e filho biológico de Mãe Hilda, buscou orientação para o nome do movimento.
Valéria destaca que as mulheres no candomblé na Bahia e no Brasil, desempenham um papel político importante dentro da religião. A liderança está diretamente associada à figura feminina, isso diz respeito à densidade do sentimento materno da mãe africana.
Dessa forma, Mãe Hilda fez o seu papel e orientou o Vovô a dar o nome de Ilê Aiyê - nome oriundo da língua iorubá, que significa “Nossa Casa” ou “Nossa Terra” (Ilê significa Casa, e Aiyê é Terra), carregando a herança dos orixás e os costumes culturais da Mãe África.
“Ela se tornou mãe, conselheira e tudo mais que lhe coube durante os quase 60 anos à frente da casa”, destacou Valéria. Mãe Hilda se tornou uma referência para a comunidade negra.
Valéria também destacou que o Candomblé cria laços profundos de parentesco, não dando apenas o papel de fiel ou adepto, mas proporciona laços de família, pois a relação é de mãe, filhos, irmãos e assim por diante. Mãe Hilda temia que os policiais vissem o bloco como uma manifestação e os filhos dela sofressem as consequências, por isso sempre garantiu a proteção através da espiritualidade.
O Candomblé sempre esteve muito presente nas atividades dos blocos do Ilê Aiyê, muito além do rufar dos tambores ou das letras sobre a cultura afro. Mãe Hilda tinha rituais que asseguravam que os integrantes fossem protegidos pelos orixás que regiam o terreiro dela.
“Mãe Hilda que criou o ritual de saída do Carnaval pedindo proteção a Obaluaê, através da pipoca que é jogada nas pessoas, e pedia para que Oxalá nos cubra com o alá dele. Ela jogava milho branco pedindo misericórdia e clemência aos dois orixás, para que tudo ocorra bem ao longo do Carnaval”, explicou Valéria.
Acervo pessoal da família
Obaluaê é o orixá de cabeça de Mãe Hilda e dono do Axé Jitolu, ou seja, o orixá que rege o terreiro - quem está na frente, no comando. Obaluaê ou Omolu é o orixá da cura e também da doença, ele está relacionado a terra seca e quente. A pipoca é um alimento ligado a ele, capaz de purificar o corpo e eliminar energias negativas.
Oxalá foi quem recebeu a missão de criar o universo e também os seres humanos, por isso é chamado de ‘pai Oxalá’, ele é o pai de todos. O milho branco redistribui o axé, por ser o elemento apaziguador, que arranca a morte, a doença, a pobreza e tudo que pode fazer mal. Essa era forma que Mãe Hilda protegia os filhos.
Segundo Valéria, Hilda se iniciou no Candomblé com 19 anos por motivos de saúde, um meio comum de acesso à religião. Hilda não queria firmar compromisso, mas com o passar dos anos as cobranças começaram a ficar mais fortes, então ela cedeu e fez o santo. No momento da sua iniciação, Hilda recebeu o nome de Jitolu, que significa “aquele que vem com a força da terra”.
Hilda teve seis filhos, sendo o primeiro deles Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, em 1952. A família que ela construiu teve uma vida humilde no bairro do Curuzu. Ela sustentava a família vendendo comida na rua, uma orientação do próprio orixá. A família nunca abandonou as necessidades religiosas.
O nascimento do Vovô também marcou o nascimento do Acé Jitolu, e então, Mãe Hilda se tornou uma ilalorixá - mãe de santo, ou ‘Nandoji’, como a mãe espiritual é chamada na nação Jeje. O Ilê Aiyê tem uma música que descreve a história da vida religiosa de Mãe Hilda: “Matriarca do Curuzu”.
“Matriarca do Curuzu, Mãe, Mãe
Hilda Jitolu
Matriarca Ilê Aiyê
Vem saudar você”
Valéria relembra que na década de 50, a prática do Candomblé ainda era perseguida pela polícia e necessitava de registro, pagamento de taxa e autorização da Delegacia de Jogos e Costumes para realizar as festas e costumes.
O Candomblé foi um dos pilares para o Ilê acontecer, por isso a importância do significado do nome que ele carrega. “O barracão do terreiro ficou pequeno para as festas que o Vovô organizava”, disse Valéria.
Mãe Hilda acompanhou o primeiro desfile do bloco, no fim da Ditadura Militar, Valéria explica que Mãe Hilda temia o que a polícia pensaria ao ver tanto negro junto. À época, os militares ligavam qualquer manifestação cultural à “coisa de comunista”, e aliada às atividades políticas do Ilê Aiyê estava Mãe Hilda, determinada com a criação e proteção. Com a benção dela e dos orixás que os acompanhavam, o Ilê se tornou conhecido por toda cidade de Salvador, no Brasil e no mundo.
Com a licença dos orixás que reinam em cada cabeça dos integrantes, Mãe Hilda mantinha as obrigações do terreiro pedindo paz no Carnaval, agradava os santos com oferendas para que pudessem levar a harmonia pela avenida.
Valéria explicou que Mãe Hilda, antes de todos os carnavais, são feitos rituais de proteção e caminhos abertos nos dias que o bloco está nas ruas. O sábado de Carnaval é o dia mais marcante, onde muitas pessoas se reúnem na ladeira do Curuzu.
O Ilê Aiyê e Mãe Hilda mudaram e influenciaram os comportamentos de milhares de negros e negras de todo país. Em entrevista dada à TVE, em novembro de 2008, ela falou sobre seu apoio ao bloco.
“Enquanto eu estiver viva eu tô dando conselho. Quando eu for embora, deixo aí a força, a raíz em terra”.
Um ano depois, no dia 19 de novembro, Mãe Hilda faleceu aos 86 anos. O Ilê Aiyê e o Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu mantêm o seu legado vivo.
O Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu é uma organização feminista negra, que luta para assegurar a acessibilidade de direitos para meninas e mulheres cis e transexuais negras. Tendo como foco a promoção de ações integrais, para o Bem Viver, voltadas para a educação, direitos sociais e direitos humanos.
Valéria Lima também é responsável por preservar o legado da avó com o livro ‘Mãe da Liberdade - a trajetória da Ialorixá Hilda Jitolu, matriarca do Ilê Aiyê’, escrito em 2014 como dissertação de mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e publicado este ano.
“A ideia é contar e preservar para as próximas gerações a história de mulheres negras assim como ela que contribuiu e contribui para nossa busca pela igualdade racial”, afirmou Valéria.
O livro está disponível para download gratuitamente no site do Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu. [Baixe aqui].
Acervo pessoal da família