Entidades acionam Justiça contra veto do CFM a procedimentos para jovens trans

Resolução do Conselho que proíbe o bloqueio hormonal para mudança de gênero no público infantojuvenil e aumenta a idade para o início de hormonização

Por FolhaPress
Ás

Entidades acionam Justiça contra veto do CFM a procedimentos para jovens trans

Foto: CFM/Divulgação

Entidades médicas e associações que representam pais de crianças e adolescentes transgêneros vão recorrer à Justiça contra resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proíbe o bloqueio hormonal para mudança de gênero no público infantojuvenil e aumenta a idade para o início de hormonização e cirurgias de transição com efeito esterilizador.

De acordo com texto aprovado pelo CFM na última terça (8) e que ainda precisa ser publicado no Diário Oficial, o veto à prescrição de bloqueadores hormonais (que interrompem a produção de hormônios) só vale para crianças e adolescentes que queiram fazer a transição de gênero e não se aplica a casos de puberdade precoce ou outras doenças endócrinas.

A resolução também aumenta de 16 para 18 anos a idade mínima para iniciar terapia hormonal cruzada a reposição de hormônios sexuais para feminização ou masculinização, de acordo com a identidade de gênero. E eleva de 18 para 21 anos a idade das cirurgias para redesignação de gênero com potencial efeito esterilizador, por exemplo, as que removem útero e ovário.

Nesta sexta (11), profissionais de serviços que atuam na assistência e na pesquisa com a população trans buscavam apoio de sociedades médicas para ingressar com ação judicial contra a medida. Para eles, a resolução representa um grave retrocesso e os argumentos que a embasam não têm amparo em evidências científicas.

Eles alegam que, além de autoritária, por não ter ouvido quem trabalha na linha de frente com essa população, a norma tem ambiguidades. Uma delas é argumentar que o veto ao bloqueio hormonal ocorre porque há poucas pesquisas a respeito dos seus efeitos e, ao mesmo tempo, proibir que essas pesquisas sejam feitas. Atualmente, o bloqueio só é permitido em protocolos de pesquisa.

De acordo com o advogado Henderson Fürst de Oliveira, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP, a resolução extrapola a esfera de competência do CFM, entra em conflito com a política nacional do SUS voltada à população trans e interfere nos direitos dos pacientes.

O fato de a resolução permitir que crianças que estejam em tratamento prossigam com o bloqueio hormonal e vetar que novas o façam também é questionável juridicamente, segundo ele.

"Você vai ter crianças e jovens que recebem e outros que não unicamente pelo tempo que conseguiram iniciar [a terapia]. É como se criasse um marco temporal do tratamento. E quem já estava na fila de espera, já tinha todos os critérios de elegibilidade, só não começou por restrição de atendimento do SUS?"

De acordo com Ana Paula Andreotti Amorim e Marcello Medeiros Lucena, ambos médicos de família e comunidade e respectivamente presidenta e vice-presidente da Abrasitti (Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo), há evidências científicas suficientes sobre os prejuízos a saúde física e mental quando esses procedimentos não estão disponíveis e, por outro lado, dos benefícios do seu acesso quando são desejados.

"A proibição de que profissionais médicas e médicos no Brasil ofertem esses cuidados, além de ir na contramão das melhores evidências científicas, vulnerabiliza ainda mais todas as pessoas trans que passam a recorrer a métodos inseguros e sem acompanhamento adequado em saúde."

Segundo eles, o bloqueio puberal é também realizado em crianças que têm puberdade precoce e não causa mudanças definitivas a crianças e adolescentes trans. "Uma resolução restritiva coloca em grande sofrimento não só as pessoas trans, crianças, adolescentes e adultas, que buscam assistência, mas também profissionais de saúde, inclusive médicas e médicos, que passam a ser impedidos de oferecer cuidados que, em alguns casos, podem salvar vidas."

Regiani Abreu, advogada e presidente da ONG Mães pela Diversidade, diz que a resolução é cruel e desumana. Ela tem um filho trans de 16 anos que fez uso de bloqueadores de puberdade e recentemente começou hormonização.

"Quando li sobre a notícia, bateu um desespero, um aperto que só mãe entende. Meu filho, que hoje está bem, em tratamento, crescendo forte, sendo quem ele é, poderia simplesmente não ter tido essa chance."

De acordo com ela, a ONG encaminhou à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal representação para que apure eventual ofensa, por omissão do Estado, ao direito à saúde e à identidade de gênero, diante, inclusive, do princípio da proibição de retrocesso.

Também foi encaminhada carta ao Ministério da Saúde pedindo a implementação do Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans (Paes – Pop Trans), conforme originalmente redigido, garantindo a inclusão de crianças e adolescentes trans no acesso às políticas públicas de saúde. A medida está parada desde dezembro passado no ministério.

O Paes Pop Trans buscará ampliar de 22 para 194 o número de serviços credenciados para o atendimento desse segmento da população no SUS em todo país, com investimentos estimados em quase R$ 443 milhões até 2028. A medida também prevê a oferta de bloqueadores a partir dos primeiros sinais da puberdade, e hormonização depois dos 16 anos.

Em nota, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) expressou repúdio à resolução do CFM e disse que ela promove um grave retrocesso no direito ao acesso à saúde integral da população trans e travesti no Brasil, especialmente de crianças e adolescentes.

"Estamos diante de mais uma ação coordenada que dialoga com a crescente agenda antitrans em nível global, marcada por políticas e discursos que atacam diretamente a existência, a dignidade e os direitos básicos da nossa população."

A Antra manifestou preocupação com a omissão do governo federal, que não estaria se posicionando com firmeza diante da retirada de direitos da população trans no campo da saúde. A entidade também pediu explicações sobre a não publicação do Paes Pop Trans.

Procurado para comentar a nova resolução do CFM e a situação do Paes Pop Trans, o Ministério da Saúde não se pronunciou até a publicação desta reportagem.

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